sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Jacques Touraille - Postfácio à Filocalia dos Padres Népticos

Em 1782, na véspera dos acontecimentos que iriam sacudir a Europa das Luzes, foi publicada em Veneza uma antologia de textos bizantinos, cuja origem e a região de extração eram os eremitérios e os monteiros da envoltória do Mediterrâneo Oriental, dos desertos egípcios e do Monte Sinai, até Constantinopla e o Monte Athos. Esses textos, heterogêneos mas todos escritos por monges – cerca de trinta autores – como numa inspiração única, do fundo do indizível e do intangível, mas sempre seguindo o curso de uma história de mais de mil anos, do século IV ao XV, faziam a ligação desde o fim da Antiguidade pagã e o fim da Idade Média cristã, ou da fundação à derrocada do Império Romano do Oriente, ou ainda, e sobretudo mais precisamente, e mais misteriosamente, da desaparição histórica à transfiguração interior, do temporal ao eterno. A antologia se intitulava Filocalia dos Padres Népticos, composta a partir dos escritos dos Santos Padres que traziam a Deus em si, e na qual, por uma sabedoria de vida, feita de ascese e de contemplação, a inteligência é purificada, iluminada e atinge a perfeição. Um título assim, no final do século XVIII, ultrapassava a barreira do som, se podemos nos exprimir assim. E não é certeza que hoje, dois ou três séculos depois – e que séculos! – possamos nós entender o que os editores de 1782, Macário de Corinto e Nicodemo o Hagiorita, tentaram expressar com essa obra.

Seja como for, esse livro surgiu para exprimir por si mesmo, a qualquer tempo, na linha do Evangelho, dois paradoxos que eram então, e ainda são, tanto anacronismos como antecipações. De um lado o intelecto – em grego nous – cessando de se voltar todo o tempo para o mundo para conhecê-lo e utilizá-lo até o limite do possível, volta-se sobre si mesmo pra se confiar pelo impossível à origem do mundo, nesse fundamento abissal que os monges denominavam “lugar do coração” ou “lugar de Deus”. De outro lado, esse intelecto “retornado” – tornado meta-noia, arrependimento ontológico, e noera proseuche, prece intelectual ou noética, prece do intelecto no “lugar do coração” – constitui uma espécie de sexto sentido, um noera aisthesis – o sentido intelectual ou sentido do intelecto – capaz de absorver os cinco sentidos corporais, de recapitular o mundo inteiro e finalmente de se deixar imantar e transfigurar em pleno corpo e em pleno mundo, como se fora do corpo e fora do mundo (“Deus o sabe”, dizia São Paulo) pela luz anterior ao mundo e criadora do mundo, bem diferente daquela com que se enfeitavam os enciclopedistas na aurora da modernidade.

A Filocalia consiste em algo bem maior do que um documento de época. A própria palavra significava para a Antiguidade grega o amor à beleza estética, cósmica ou moral, no fundo o inverso silencioso da filosofia, e de fato o campo da arte. A revelação evangélica, seu sentido do Deus amor, do Deus luz, do Deus Um, do Deus Trindade, do Deus vivo, Criador e Salvador, Pai eterno anterior ao mundo, Filho eterno encarnado na criação, Espírito eterno imantando a gestação do criado, não podia senão implodir essa primeira Filocalia grega e fazer do amor pela beleza a um tempo a lembrança da origem e a esperança do fim: “a arte das artes e a ciência das ciências”, diziam os monges. Pois a beleza não se limitava nem ao cosmos, nem ao corpo humano dos deuses cósmicos, nem às obras de arte. Ela não se deixava definir por rótulos. Ela era o Deus vivo em pessoa. Ela era Cristo e, nele e por ele, aquilo que o Novo Testamento chamava de “luz do Cordeiro” e os monges bizantinos de phos aktiston, a luz incriada, justamente Deus luz, tanto nas extremidades como no coração do curso temporal e espacial da luz criada. A Filocalia, o amor pela beleza, se transformara em amor a Cristo, nos dois sentidos, e no fundo sutil das raízes dos sentidos: o amor louco que o Filho de Deus, pelo Espírito da verdade, dedica ao homem criado à sua imagem, e também o amor louco que o homem, em troca, por suspiros inefáveis desse mesmo Espírito, dedica ao Filho do homem, que ele gera em seu coração à semelhança de Deus.

Essa Filocalia evangélica faz corpo com a transmissão mais secreta e mais direta. Ela indica as modalidades, as causas e os efeitos de uma interiorização abissal, diretamente sobre a vida, onde se abrem a treva e o silêncio que separam e unem o criado e o incriada, as sementes e a colheita, o origem e o fim do possível. Nada menos do que uma abertura infinita. Quem teve essa experiência é como se tivesse sido tocado pela morte. Ele perde suas marcas do tempo e do espaço. Mas agora ele pode também atestar que a carne não está jurada à fatalidade do despedaçamento e da dissolução. Pois existe a liberdade de oferecer sua vida mortal em sacrifício de louvor ao Pai das luzes, à luz anterior, à luz eterna, única capaz de fazer dos cristãos o sal da terra. A transfiguração do tempo e do espaço não é necessariamente uma abstração, nem forçosamente uma ilusão. Ela pode também, ao vivo e a nu, apenas pela abertura do coração em prece, se tornar o lugar e o momento em que é dado ao homem perdido beber da energia incriada, da fonte do real, do inacessível, da luz do Cordeiro. Claro, entre a abstração e a ilusão, a porta é estreita. Não existe outro lugar de passagem que não o “lugar do coração”, onde os monges projetam sua agonia, sua espera, seu desejo. Eles contam as dores e as delícias do novo nascimento, e como a porta se abre finalmente para a liberdade dos filhos da luz.

Aqui cabem três observações liminares. Em primeiro lugar, a Filocalia é indissociável da Bíblia. Ela está cheia de citações escriturárias. No fluxo da História sagrada, ela se coloca como memória permanente da origem e como abertura para o século futuro. Ela precede e antecipa. A revelação bíblica se encontra aí precisa e totalmente captada na fulgurância última e na questão que ela coloca a todos a quem ela toca em último lugar. Como se oferecer ao Cristo ressuscitado? Como viver com ele, no coração crucificado do impossível, ainda que em espelho, o mais próximo possível da luz do Cordeiro?

A resposta é eclesial. Na medida em que ela é obtida a partir de todos esses textos nas condições e nos efeitos do amor louco do coração em prece, a Filocalia realiza a Igreja em tudo  e por tudo, como o Evangelho realiza a Lei, dando-lhe significado e assumindo-a desde sua origem: um chamado perdido e profético a se unir a Cristo corpo e alma, para que todos sejam um, como o Filho e o Pai são um.

Mas com a Filocalia se dá o mesmo que com o Evangelho. Ela realiza sem abolir. Assim como a luz do Cordeiro é o lugar do incriado, também o corpo e o sangue de Cristo – o Cordeiro em pessoa – presentes no pão e no vinho, na carne do mundo, assumem até o sacrifício o lugar do criado: a dupla passagem da luz para a carne e da carne para a luz. A eucaristia sacramental que a Igreja celebra e manifesta está assim no coração de tudo que os monges aqui mencionados reportaram. Muitos eram também padres. Todos – muitas vezes sem mencioná-lo, por evidente que era – incorporaram o mistério matricial. Mas todos engajaram suas vidas,  - é o que disseram e repetiram – na interiorização ascética, orante e contemplativa da liturgia e da comunhão. E todos oraram a Jesus Cristo sobre o “altar do coração”, como o chamavam, ali invocando o Senhor e Filho de Deus, clamando continuamente pelo Espírito Santo.

Isso significa que a Filocalia convida o monge, o cristão, à radicalização e à finalidade evangélicas, à empresa e ao trabalho do Espírito de verdade que procede do Pai, e também ao exercício e à transmissão da vida espiritual, no sentido próprio, no sentido forte, em que o próprio Espírito intercede com suspiros inefáveis, os únicos que, num coração orante, estão à altura da impossível passagem do corpo de carne para o corpo de luz, para o qual a Páscoa de Cristo chama todos os homens.

Assim é que a experiência dos monges não faz outra coisa do que representar a permanência da revelação bíblica, atestando a passagem da imagem à semelhança de Deus: o próprio lugar da liberdade humana, na medida mesma em que o Reino de Deus deve ser tomado pela força. Mas essa liberdade não é nem arbitrária, nem improvisada. Da perspectiva do reino, menos voltada para o horizonte do espaço e do tempo do que derramada sobre o coração atual, a liberdade do homem constitui um sacrifício de amor, uma oferenda ao amor. Ela é o amor à beleza. É isso que a Filocalia implica em todos os seus textos: uma relação livre do amor une os dois polos da criação, o modelo e a imagem. A imagem – a hominização do mundo – era exclusiva de Deus. Mas aqui e agora, o homem, imagem última de Deus, deve assemelhar-se ao modelo original. A atestação dos monges está no coração da mensagem bíblica. Ela transmite a obrigação cristã da semelhança. Uma semelhança que é daqui em diante típica do homem, e que coloca em causa e em ação a liberdade de imagem e o amor que ele dedica ao seu modelo.

Com efeito, a semelhança cria uma obrigação. Os monges devem, por sua vocação – que é a vocação de todo cristão – na dianteira do decurso do mundo, tanto em sua liberdade como em sua carne, ser os testemunhos vivos da dupla passagem de Cristo do incriado para o criado na origem do mundo, e do criado para o incriado no fim do mundo, e trazer consigo essa passagem última, a Páscoa, no seu coração atual. Assim, o nascimento e a morte não são vividos apenas na necessidade da fatalidade cósmica. Eles se tornam em plena liberdade aquilo que o Novo Testamento denomina como o novo nascimento. Enquanto que todos os corpos que nascem no tempo e no espaço, todos os  corpos mo curso do mundo, deixam atrás de si seu nascimento,  seu “alfa” e se dirigem para seu fim, seu “ômega”, o monge, sem abolir seu corpo nem o curso do mundo – pois ele está nos antípodas do suicídio e da deserção – retorna para sua alma e sua consciência, para não mais considerar senão o “alfa”. Tampouco ele se dirige para a morte recuando. Muito pelo contrário. Diante de si ele vê seu nascimento, seu novo nascimento, e atrás de si fica sua morte. Dito de outra maneira, se isso é verdade, se ele não estiver se iludindo, se a prece e a graça lhe bastarem, ele estará continuamente voltado para o estado de prece e até transportado pelo estado de  graça como que para fora do tempo e do espaço, diretamente na passagem do criado para o incriado, diretamente para a Páscoa, nas condições da eucaristia sacramental, aqui e agora, pura e simplesmente, para o coração da própria vida. Assim como o Evangelho anunciava mais do que a adoração do Deus vivo no templo de Jerusalém e representava a adoração em espírito e em verdade, a adoração interior, contínua, imediata, da Pessoa divina, o amor do amor, fora de todo ritual, de todo edifício construído, diretamente no coração, também a via filocálica, sem buscar fazer mais ou diferente do que a comunhão eclesial, não deixa de se esforçar por celebrar continuamente, também em espírito e verdade, também diretamente no coração, neste lugar que era para os monges o lugar de Deus, o lugar da passagem obrigatória da carne para a luz.

Mas aqui é impossível nada saber, nada querer. É forçoso remeter-se em tudo e por tudo Àquele que encarnou em seu corpo a passagem, Àquele que é o Cordeiro, e o Cordeiro imolado. É o que fizeram os monges que se expressaram na Filocalia. Eles foram os ascetas da fé, ascetas da esperança, ascetas do amor. Acima de tudo, mais do que tudo, ascetas do amor: um amor mergulhado na origem, voltado para o último, plenamente oferecido ao amor de Deus, depois entregue pelo próprio amor a Deus ao mundo presente, e finalmente entregue em Deus ao amor pelo homem. A própria inspiração do Evangelho. Nada de outro aqui, no mais profundo, na própria carne, do que um amor louco. Com o coração crucificado da salvação, o coração quebrantado do impossível, esses monges amaram o Senhor, eles amaram Jesus, eles amaram a Cristo, eles amaram o Filho de Deus em pessoa. É a ele que eles oraram com toda sua inteligência. É dele que eles esperaram a resolução do impossível, a abertura desse lugar do coração onde tudo é  conduzido ao nada, e finalmente transfigurado na origem e no último, como se fosse entre o menos infinito e o mais infinito.

Tal é a Filocalia em todos os seus estados. Nada que se pareça com uma suma teológica. Nada que possa ser analisado como uma construção da inteligência humana. Nenhum sistema de pensamento, nenhuma conceptualização, nenhum fundamento intelectual além da própria inteligência dos monges, todos, como um único homem, forjados pelo mesmo retorno da inteligência – a metanoia, o arrependimento – e suas consequências – a aproximação do Reino de Deus – e transmitindo de geração em geração e de lugar em lugar o encaminhamento e as modalidades de uma experiência – a anacorese e o Hesiquiasmo – que iremos agora analisar em sua essência, primeiro nas condições históricas do movimento, depois no seu conteúdo e na extensão de seu testemunho, e enfim na atualidade secreta e real de sua transmissão.

AS CONDIÇÕES HISTÓRICAS

Milhares de anos depois da origem e da criação temporal do mundo, depois dos “seis dias”, nesta extremidade do possível onde não cessa de se agudizar e se afinar o martírio da consciência, os monges atestaram que a criação está concluída, que ela alcança seu termo no corpo do homem, que o lugar de Deus, assim como o lugar divino do homem, é o sabat, o repouso do sétimo dia, que já não existe doravante outra história senão a passagem do sétimo para o oitavo dia, do fim do mundo ao Reino de Deus, da morte do corpo de terra à sua ressurreição no corpo de luz, e que essa passagem não apenas não  tem lugar no tempo e no espeço cósmicos, mas que ela implode – ela transfigura – toda a criação na interioridade, nesse fundamento divino do criado que os Padres gregos chamaram de hipóstase, e que a Filocalia chama de coração. Falar das condições históricas da Filocalia, na medida em que a antologia transcreve e transmite tal experiência dos limites do temporal, surge como um paradoxo. Mas não como um contrassenso. Pois a história dos monges é como a História Santa. Ela não se desenvolve tanto no tempo, antes ela é o próprio tempo em busca da eternidade, no seu extremo radical, onde se exerce o desejo consciente de mergulhar no sétimo dia, para finalmente forçar a passagem para o oitavo. Assim é que essa cabeça que procura já não tem onde repousar. Como o Filho do homem, ela é o signo da contradição: a mais sábia e calma interiorização da origem, e ao mesmo tempo a mais louca e violenta tensão em direção ao último.

Os monges, abandonando o percurso natural das gerações humanas, partiam pelo caminho do impossível. Eles não podiam deixar no decurso do mundo nenhum traço tangível de sua tensão, de sua agonia, de seu combate de linha de frente entre a carne e a luz, cujo objetivo, o testemunho imantado e imantador, será até o final a prova que falta. O mundo se apresenta aqui como o túmulo vazio: Cristo ressuscitado não está mais aqui. Agora a imantação é mística, e não pode ser senão mística. Assim é que a Filocalia não poderia se apresentar de modo diferente do Evangelho: uma mnemotécnica da origem, daqui por diante erigida em memorial do último. Nos dois sentidos: um abismo intemporal. Mas a mnemotécnica, por suas fontes, pela ordem cronológica dos textos, pelo que sabemos da vida de seus autores, não deixa de desenhar, como uma filigrana, diretamente a anacorese e o Hesiquiasmo, um afresco histórico.

A história dos textos do memorial, os tempos e os lugares em que viveram seus autores, revelam assim como o movimento monástico passou da cidade aos eremitérios do deserto, de Constantinopla e Alexandria à Tebaida egípcia, depois para os eremitérios nos mosteiros cenobíticos, para as comunidades de monges, do Egito ao Monte Sinai e às margens do Mediterrâneo, e por fim aos mosteiros nas cidades, nos conventos urbanos de Constantinopla e Tessalônica, para ser finalmente recapitulado, no Monte Athos, numa cidade de mosteiros e eremitérios. Foi principalmente ao redor desses quatro lugares, tão aparentados ao símbolo quanto com a história, mas bem reais – Egito, Sinai, Constantinopla, Athos – que se agruparam e se coordenaram todos os textos da antologia filocálica. A bem dizer, essa classificação é uma dentre muitas. Ela não tem limites precisos. A distinção entre tempos e lugares se apaga continuamente, e se transfigura pela osmose que os reúne. Finalmente só permanece a osmose e a transmissão. Mas o sentido está lá. A história, tanto a dos monges como a dos textos, em sua fase bizantina e em seus prolongamentos ou em sua irradiação – pois ela é bem mais do que um pergaminho – faz corpo com a parábola do Reino de Deus: ela é o germe que pede o crescimento, o crescimento que chama o fruto, o fruto que produz o grão, portanto, o novo. No coração da permanente osmose do tempo e da eternidade estão os signos mesmos dos quatro lugares, reais, históricos, mas também emblemáticos, místicos, dos quais todos, cada qual à sua maneira, encarnou e significou um dos tempos por onde passou o movimento monástico, do século IV ao XV, conforme aparecem na Filocalia.

Os primeiros tempos, dos quais dão testemunho os textos iniciais e seus autores, próprios ou figurados (Antônio o Grande, Evagro o Pôntico, Macário o Egípcio,, Isaías o Anacoreta, Cassiano o Romano, Marcos o Asceta, Diádoco de Foticéia, Filemon, Teodoro de Edessa, João Damasceno), constituíram o movimento egípcio dos eremitas e anacoretas, e suas metástases pela bacia do Mediterrâneo, entre as duas crises históricas dos séculos IV e VII, a “transferência” do Império Romano e a chegada do Islam. Na origem, um monaquismo fundamental, dedicado à permanência do martírio, à partida, ao deserto, à nudez cósmica: entre o homem e Deus, cara a cara, frente a frente a sós, às portas da morte e às portas do inferno, a retomada do diálogo que ficou suspenso à saída do Éden. Toda a mensagem filocálica – sua radicalidade, e também sua finalidade – já se encontra aí em germe: a ascese do corpo, a prece contínua do intelecto no coração, o combate pela manutenção e a transmissão da ortodoxia eclesial, o retiro do criado, a morte ao mundo, o gosto das primícias da luz incriada.

Um segundo momento, ilustrado na antologia pelos testemunhos conjuntos de Máximo o Confessor e Thalassius o Africano, bem como pelo exemplo da escola sinaíta e o movimento que a acompanhou – Hesíquio de Bathos, Filoteu o Sinaíta, João Carpatos – desenvolve e amadurece em plena crise histórica, do século VII até o fim do primeiro milênio, na partilha e na interiorização, na errância e nas implantações comunitárias, as aquisições da solidão cósmica. O monaquismo permanece fundamental. Mas o crescimento natural do germe ao mesmo tempo se enraíza no lugar do coração e secreta ao seu redor um monaquismo mais visivelmente eclesial que reúne os solitários em solidariedades orgânicas e organizadas. Desde os desertos do Egito, depois desde o Sinai, e por todo o mundo mediterrâneo, a passagem, rápida, da solidão à comunhão, da anacorese à pericorese, tece uma teia de lugares consagrados à celebração eucarística, a criação e ao convívio dos ofícios litúrgicos, ao exercício comum das virtudes teologais, à guarda do coração, aos refinamentos interiores da ascese e da prece contínua. Sobretudo, pelo número de extratos da obra englobante e crucial de Máximo o Confessor, a Filocalia nos lembra aqui do quanto a essência do monaquismo é o amor sacrificial, a história toda imantada pela teologia, até a passagem derradeira dos lugares do mundo ao lugar de Deus.

O terceiro momento, entre os séculos X e XII, é como que o fruto do crescimento: a integração da aquisição dos mosteiros. Também aí temos dois testemunhos. Uma longa reflexão de Pedro Damasceno, central à antologia. E a contribuição estremecedora dos monges formados daí por diante no interior da cidade, nos conventos urbanos de Constantinopla: Simeão o Novo Teólogo, Nicetas Stethatos, Elias de Ecdicos. Todos têm em comum levar a evolução do movimento monástico ao ponto de partida: um gesto e uma consciência infinitamente pessoais, e com o Outro assim como com todos os outros, mais do que nunca, uma relação de coração para coração. A própria finalidade dos mosteiros: levar cada monge ao cúmulo da interiorização, ao martírio da consciência e ao êxtase, para finalmente fazer dele a irradiação consciente do divino, para além dos limites da clausura conventual, até secretar diretamente na cidade um monaquismo aberto, inteiramente fundamental.

O quarto momento, do século XII ao XV, retorna e realiza o primeiro, como a semente no interior do fruto traz em si um novo germe. A Filocalia reúne a nuvem de seus últimos testemunhos. Teófano o Clímaco, Teolepto de Filadélfia, Nicéforo o Solitário, Gregório o Sinaíta, Gregório Palamas, Calixto e Inácio Xantophouloi, Calixto o Patriarca, Calixto Telicoudes, Calixto Cataphygiotes, Simeão de Tessalônica, todos (salvo talvez Teófano, de quem nada sabemos) entre Constantinopla e Tessalônica, sob as turbulências e os terremotos que anunciavam a desaparição do Império Bizantino, enraizaram seus ensinamentos no Monte Athos, concebido a um tempo como uma ressurgência da Tebaida egípcia, como uma sublimação da cidade terrestre e como uma aproximação da nova Jerusalém. O movimento monástico se concentrou aí inteiramente na atestação do revelado, na confirmação do transmitido, na recapitulação da origem e do caminho, na transfiguração interior, numa defesa e uma ilustração definitivas do Hesiquiasmo, na guarda e manutenção históricas da Igreja ortodoxa, enfim, na abertura extática ao devir absoluto, mas também, como numa passagem através do fogo, no passo suspenso em direção a um futuro possível.

Resta, no final do volume, como uma possibilidade de futuro, a chave de abóboda: um conjunto de textos, sem cronologia, sobre a prece, traduzidos em grego demótico, em língua popular. Esse “epílogo”, a um tempo plenamente tributário e como que separado do memorial, mostra bem qual era, no fundo, o objetivo dos editores de 1782: claro, fornecer aos mosteiros uma coletânea filocálica que cobrisse todo o período bizantino, ordenada cronologicamente num único livro (embora nada houvesse ali que os monges herdeiros da tradição ortodoxa já não soubessem), mas, sobretudo, oferecer a todos os cristãos que levam sua vida nas condições do mundo, o próprio sentido do engajamento monástico – a prece contínua – e deixar claro que essa ordem é comum a todos e que ela está aberta a todos.

De todo modo, a abertura aconteceu, e ela prossegue hoje. Desde a partida, o germe egípcio passou para o Ocidente, onde os mosteiros beneditinos, depois cistercienses, irrigaram a Cristandade. Da mesma forma, para o norte, bem antes do desastre do século XV e depois da desaparição do Império Bizantino, outros mosteiros, de tradição ortodoxa, se implantaram na Bulgária, na Sérvia, na Romênia, na Ucrânia, na Rússia. Quanto à área helênica, totalmente sob o domínio otomano, ela manteve a herança, como num lugar fechado, por seus Patriarcas, por seus mosteiros – em especial Patmos, e sempre Athos – até o final do século XVIII quando, quarenta anos antes da insurreição de 1821, a Filocalia foi publicada em Veneza. A edição, repatriada para a Grécia – os livros tomaram primeiro o caminho dos mosteiros do que o das casas – não constituiu nem um acontecimento, nem uma chegada. É verdade que os mosteiros estavam mais do que nunca no coração daquilo que os Gregos chamavam de ethnos, a nação, inteiramente ocupada, nos primeiros decênios do século XIX, em se libertar do jugo otomano e em gerar as primícias de sua nova e problemática independência. Foi preciso aguardar pela segunda metade do século XX para que a transmissão se operasse no sentido indicado, e acolhida pelos pioneiros. A obra só foi editada em Atenas, quase na íntegra, em 1893. E não foi verdadeiramente difundida, transmitida a todos, senão após uma terceira reimpressão, de 1957 a 1963, e de uma quarta, de 1974 a 1976, sempre em Atenas.

Mas os editores de 1782 tiveram uma antevisão correta. Houve, imediata e rapidamente, uma transmissão e uma irradiação da mensagem filocálica, mas no mundo eslavo. Em 1793, Paissy Velichkovsky, um monge russo da Moldávia, que havia morado por cerca de vinte anos no Monte Athos em meados do século XVIII, editou em Moscou (com uma sequência de cinco reimpressões de 1822 a 1902) uma Dobrotoliubie, uma Filocalia eslavônica, redigida em paralelo ao trabalho de Nicodemos e Macário, revisada e organizada sobre o modelo da Filocalia grega. A essa antologia eslavônica acrescentou-se, também publicada em Moscou, de 1877 a 1905, por Teófano o Recluso, uma tradução russa, diferente, mais voltada à ascese, podando alguns textos e acrescentando outros, criando uma obra mais volumosa. Essas duas versões irrigaram os mosteiros, alimentaram os monges e, por meio deles, tocaram muitos Russos, de grandes escritores – como Tolstoi e Dostoievsky – a pessoas do povo. Um testemunho disso foram os Relatos de um Peregrino Russo, publicados pela primeira vez em Kazam em 1870. A Filocalia, fora dos mosteiros, diretamente na decadência e nos males do mundo, aí colocou em movimento, até o êxtase, as beatitudes evangélicas: uma confirmação.

A chegada da Filocalia no século XX está primeiramente ligada à tradução e à edição romena (pelo Padre Dumitru Staniloae, desde 1946 até os anos 80) de uma antologia bem mais ampla, também ela, do que a versão grega. Foi também na segundo metade do século XX que a França, bem como toda a Europa ocidental, foi tocada, ou melhor, atingida por um evento editorial específico: a tradução dos Relatos de um Peregrino Russo, uma Pequena Filocalia da Prece do Coração (um florilégio da Filocalia grega), uma tradução integral da Filocalia grega (em onze fascículos e sem ordem cronológica) e uma Nova Pequena Filocalia, que, na sua concepção, intitulava-se simplesmente O Amor ao Belo, e era menos um florilégio do que uma colocação de uma perspectiva temática. Finalmente, a Filocalia dos Padres Népticos, editada pela Abadia de Bellefontaine, reproduziu tal e qual a tradução integral, restabelecendo a ordem cronológica dos textos, sobre o modelo da Filocalia grega. Nessa edição tomou-se o cuidado (que também vale para todas as edições atuais da Europa ocidental, onde a chegada da Filocalia não se deu por si só, uma vez que tamanha herança só pode ser transmitida como um transplante) de transcrever, em sua historicidade e sua coerência, profundidade e alcance, as escolhas feitas no momento em que foi ofertada e aberta a todos essa transmissão da experiência hesiquiasta. No mesmo sentido, em respeito aos pioneiros e com o cuidado de mostrar o espírito de piedade da edição original, essa edição contou com uma introdução por Olivier Clement, seguida da introdução geral de Nicodemos o Hagiorita, parceria mantida em todas as notas, capítulo após capítulo, sobre a vida de cada autor.

O CONTEÚDO E O ALCANCE

Bíblica, eclesial, em todos os seus textos aberta ao sopro de Deus, do qual ninguém sabe “de onde vem ou para onde vai”, a Filocalia não estabelece nem organiza nenhum limite. A sequência das gerações de monges que ela testemunha não indica senão o seguinte: todos foram imantados por Cristo. Nós gostaríamos de tornar sensível essa nota fundamental, mantida durante um milênio por vozes sucessivas e unânimes, e tentar mostrar, na linha dos pioneiros, como, dos eremitérios da Tebaida aos conventos urbanos de Constantinopla, do Monte Sinai ao Monte Athos, e mensagem vai de um extremo a outro com um só e mesmo conteúdo. E isso para sublinhar o que nos parece aqui essencial: a imantação é a própria Filocalia, o amor da beleza original e última, que irradia no lugar do coração onde se conjugam os três estados clássicos da vida do monge, a iniciação, o progresso e a perfeição, e os três movimentos da vida de Cristo, como reportados no Evangelho, a imolação, a compaixão e a glorificação.

Antes de tudo, como na origem da criação, como na origem da salvação, a imolação pelo amor. a Filocalia é fundamentalmente o testemunho de homens que, loucamente fiéis ao mandamento evangélico, e sem ostentação, sacrificaram em silêncio tudo o que suas vidas tinham a ganhar no curso do mundo. Nesses limites, nesses abismos, eles representaram sem querer a chave de abóboda da revelação bíblica: a imolação pascal do Cordeiro. Eles não podiam senão se despojar de si mesmos. Daí veio toda uma sequência de engajamentos sacrificiais, que constituíram a ação, a praxis ou pratktiké, a qual, no movimento monástico desde Evagro, não tem nada a ver com aquilo q eu um homem pode fazer no mundo. A praxis dos monges não é uma ação em relevo, mas uma ação no vazio. O monge apaga toda suficiência de si para oferecer a Deus apenas o coração quebrantado pela consciência do desvio e da maldade, a consciência da perdição e do desastre, para finalmente não ser mais do que o testemunho – o mártir – dessa consciência. A atestação filocálica não conduz a nada na ordem do mundo. A perspectiva que ela abre é invertida. O ponto de fuga, como já dissemos, está menos no horizonte do espaço e do tempo do que na atualidade do coração, onde se encontra, aqui e agora, a implosão, o retorno da morte. Isso equivale a dizer o quanto as virtudes ativas não garantem nenhuma suficiência. Em caso algum (salvo para encerrar aquilo que os monges chamavam de desvio do direito) elas poderiam constituir um sistema psicossomático tranquilizador e edificante. Por si sós, elas não confortam nenhuma permanência biológica, nenhuma situação social, nenhuma construção metafísica. Menos ainda qualquer coisa que se pareça com uma imitação moral. Nada capaz de reduzir o movimento circular do amor, a escada dos anjos que subiam e desciam acima de Jacó, como com o Filho do homem, a escada mística que não passa de uma performance humana. A Filocalia testemunha o contrário. Sim, ela atesta o fundamento correto do trabalho das virtudes ativas e de seus nexos, e o faz a partir de situações que implicam de todo modo circunstâncias de tempo e de lugar, mas ela também exige e suscita, sobretudo, e sempre, um discernimento, escolhas e resoluções pessoais, ou seja: a liberdade. A ascese das virtudes nunca passa de um exercício de orientação. Como se deixar imantar, da melhor maneira, da mais simples, mais direta, pela beleza última, por Cristo? Como se colocar bondosamente, pura e simplesmente, sob a escada angélica?

Todos os engajamentos sacrificiais fazem corpo aqui com a virtude cardinal, que orienta e reúne todas as demais com vistas ao incriado, e que os monges orientais, desde o princípio, chamaram em grego hesychia, uma palavra que acabou por significar no limite a identidade desses monges – os hesiquiastas – e a especificidade de sua experiência e de sua atestação – o Hesiquiasmo. Hesychia significa calma, repouso, paz, silêncio, solidão. Mas o que significa exatamente a hesychia diretamente na vida e no coração do monge, em sua alma e em sua consciência? O problema da interpretação, capital desde o século IV, prossegue hoje em dia, e com mais ênfase até. A Filocalia define a hesychia como “a retirada que se corta o mal[1]”, mas toda a atestação mostra que ela é na verdade uma retirada indizível do criado para o interior de si mesmo, no fundo aquilo que Simone Weil chamava de “descriação”. A tradução da Filocalia da Abadia de Bellefontaine conserva tal e qual o termo hesychia, no sentido de “retirada do criado”, repouso sabático e paz de Cristo ressuscitado, entre o sétimo e o oitavo dia, na fronteira entre o criado e o incriado, aqui e agora.

Aqui e agora, ou a eterna atividade do coração. Assim como toda passagem da Bíblia comporta um sentido literal, ligado à história e às modalidades do tempo e do espaço, e um sentido espiritual, ligado à interiorização da mensagem, também na antologia filocálica é preciso sempre discernir dois sentidos em toda virtude, um sentido segundo o qual ela faz seu caminho e seu trabalho no decurso de uma vida mortal, e um sentido segundo o qual ela se interioriza no coração. Assim, num primeiro nível, um monge que vive na hesychia é um homem que se retira para a calma, o repouso, o silêncio, a solidão de seu eremitério ou de sua cela. “Viva em sua cela, e ela lhe ensinará tudo”, diz o adágio. “Ela lhe ensinará tudo”: equivale a dizer que esta primeira hesychia ajuda o monge a alcançar o segundo nível, que é propriamente o da “hesychia do coração”, a própria retirada do criado. E mais uma vez, equivale a dizer, tão crucial é este ponto, o quanto a hesychia não foi concebida nem vivida pelos monges como um tranquilizante espiritual. A retirada não tem nada de uma técnica de concentração ou de domínio de si mesmo; ela não pode encerrar-se a si própria.

Aquilo que a Filocalia testemunha é o contrário de uma sabedoria fechada. No fio estreito do Evangelho, ela atesta o risco da liberdade e o amor louco pelo Deus vivo. A retirada permite justamente tocar de leve essa liberdade e esse amor. E se de fato se chegar a tocar o fundo, e se esse fundo for de fato a origem do mundo, se ele for verdadeiramente o Deus de amor em pessoa, a retirada atrairá o dom. Finalmente, a imolação pelo amor se constitui numa abertura infinita. O monge que alcança a hesíquia, que se retira do criado tanto quanto pode, que se engaja incondicionalmente no impossível, este toca simultaneamente nos dois polos da criação: seu nada enquanto criatura, e o amor que o tirou deste nada. É uma fulminação certeira. Mas a Filocalia é formal: um monge não poderia, por impossível, fazer da hesíquia a matriz do dia eterno, sem um pé na terra, se podemos dizê-lo, no caso, a compaixão de um pai espiritual que possa ser e significar aos olhos deste monge o ícone vivo da plenitude, a face oculta do nada, a revelação do “Eu sou” divino. E aí, nenhuma fulminação, mas outra vez a osmose e a transmissão, na medida em que a compaixão que ele recebe o leva a se abrir como monge hesiquiasta, a compadecer-se dos demais, a se deixar absorver de corpo e alma por toda a decadência e os males do mundo, a nada guardar de sua vida, entregando-a por inteiro por amor ao seu próximo. Sempre o caminho do impossível. A compaixão jamais terá feito senão cumprir e verificar a imolação por amor. Mas, assim como a retirada, o dom tampouco poderá encerrar-se em si mesmo.

Resta, continuamente recomeçado, o recurso ao amor, o apelo imemorial à origem da misericórdia, à misericórdia encarnada, a prece do coração quebrantado ao coração compassivo: exatamente o que a Filocalia chama de prece do coração. Mas não somente. Os anacoretas egípcios falavam de uma “meditação secreta” que de fato retomava a antiga invocação do Salmista: “Senhor, tem piedade”. Mas eles já a envolviam com a forma evangélica que ela haveria de se apresentar depois: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Os monges do Sinai a chamavam de “prece de Jesus”. Muitos a chamaram de “prece pura” ou “prece contínua”, sublinhando assim seu caráter iminentemente interior, pessoal, destacado de todo ritual espacial, e sobretudo pronunciável incessantemente, em silêncio, mesmo no curso e em meio às necessidades do mundo. Mas seu nome específico, seu nome propriamente filocálico, como dissemos, é noera proseuché, a prece intelectual, a prece do nous, a prece do intelecto. E aqui ocorre a mesma coisa com a noera proseuché como ocorreu com a hesychia. Coloca-se um problema de interpretação e de avaliação. E da resposta daquele que ora depende no fundo o sentido transmissível e o alcance perceptível da atestação hesiquiasta. Pois existem duas interpretações. Uma, mínima, reducionista, que se mantém dentro do campo do possível, faz da noera proseuché uma oração psicossomática separada, ou desviada, do puro apelo do amor e da espera nua pela graça: um limiar útil e fechado. A Filocalia assinala esse risco, dentre outros. Mas ao mesmo tempo em que manifesta e aceita a expressão tardia de um método que passou em silêncio nos eremitérios e nas celas do Monte Athos, ela nos leva a seguir a outra interpretação, maximalista, que faz do intelecto em oração o lugar da metanoia, do retorno que o Evangelho associa à aproximação do Reino de Deus: portanto, um santuário do último. Pois somente o abismo chama o abismo. Todos os nossos textos concordam em dizer: o lugar do coração é um lugar aberto, o lugar das aberturas. Existem entradas permanentes e saídas permanentes. A saída da ação é a prece. A saída da prece é a contemplação. A saída da contemplação é a gestação do criado, a passagem da carne para a luz, para o coração quebrantado penetrado pela inteligência oferecida em agradecimento ao Deus vivo, diretamente para a indizível abertura do selo do impossível.

A abertura do selo constitui finalmente na saída do criado, que o Evangelho chama de “glorificação” ao falar de Cristo, e a Filocalia chama de theosis, a deificação, ao falar dos cristãos. Mas o sentido é o mesmo: é sempre a transfiguração do corpo de carne, no coração e para além de sua desaparição. Apesar de que nos nossos textos a deificação seja menos projetada num além futuro do que integrada à derrocada da morte pelo amor louco do coração presente. Isto equivale a dizer que no fundo ela compõe uma coisa única com a ressurreição histórica do Cristo crucificado, morto e enterrado, e com sua aparição mística no coração orante, no coração amoroso, como nos olhos de Maria Madalena. Existe aqui uma dupla mediação: de Cristo e do coração. É essa dupla mediação que os escritos filocálicos chamam de nous.

Ainda aí, a tradução e a interpretação de nous representa um problema. Durante muito tempo essa palavra foi traduzida como “espírito”, mas isso criava uma confusão com a tradução obrigatória do pneuma grego e bíblico, que é precisamente “espírito”, e resultou na ocultação do sentido específico do nous. Da mesma forma, a tradução mais recente de nous como “intelecto” acaba por ser reducionista[2]. Nós aqui traduzimos nous por “inteligência” por duas razões. Primeiro porque inteligência, como o nous filocálico, é um termo ambivalente: faculdade, mas também atividade, ele pode se aplicar tanto ao conhecimento do mundo como ao conhecimento de Deus. E também porque a ambivalência permite o retorno, a metanoia, o arrependimento ontológico, a passagem de um conhecimento a outro, e assim, a utilização da noera proseuché, a prece intelectual. A inteligência se sutiliza pela permanência na imantação de sua própria prece, e acaba por se tornar, no limite do possível, a noera aisthesis, o sentido intelectual, uma aisthesis, um sentido que se acrescenta aos cinco sentidos, ou melhor, que os engloba e os absorve, mas que não é em si mesmo corporal, e que, recolhido no coração, no centro real e místico do corpo vivo, percebe e recebe a atualidade da origem absoluta. Desde o século V, em nome da experiência atestada pela anacorese egípcia, Diádoco de Foticéia afirma que esse sentido é a própria mediação da luz incriada – não sem advertir que tal transfiguração interior do corpo pela iluminação da inteligência se encontra na ordem do impossível, ou seja, da graça, e que ninguém seria capaz de se imaginar capaz de alcançá-la ou prevalecer-se dela sem incorrer numa total ilusão.

E, no entanto, é exatamente essa interiorização da luz incriada, da luz do Cordeiro, que toda a Filocalia propõe, declarando a todo o momento, com o Evangelho, que somente uma coisa é necessária: manter-se em contemplação. Atirar-se em tudo e por tudo ao impossível. E aguardar. Mas não apenas isso. Trabalhar também, no mais profundo, aqui e agora, na possibilidade do impossível. Já vimos que num primeiro momento a hesíquia, reunindo em torno de si todas as virtudes ativas, conduzia o monge, o cristão, diretamente ao lugar do coração, na retirada do criado, no repouso do sétimo dia. Num segundo momento o monge é chamado a conservar e a perpetuar, sempre no lugar do coração, a própria possibilidade do impossível, a espera pela Páscoa, as primícias da transfiguração. Este segundo momento da ascese hesiquiasta, a ascese fina, a ascese da inteligência, a própria virtude da contemplação, é chamada na Filocalia de nepsis, um termo que, em grego, que possui dois sentidos: sobriedade e vigilância. É por isso que traduzimos nepsis por “sobriedade e vigilância”, pois a sobriedade implica que no limite a nepsis herda da hesíquia a retirada do criado, e a vigilância implica que ela é um despertar permanente, na espera dos sinais e das graças do incriado. Mas convém sublinhar aqui que a bem dizer a relação entre a hesíquia – o repouso no sétimo dia – e a nepsis – a imantação e a espera pelo oitavo dia – não é uma relação linear irreversível, na qual o monge passaria de uma à outra como numa sucessão natural de causa e efeito. As duas coisas não cessam de se envolver e se penetrar. Também aí, entre a retirada do criado no coração e a guarda do coração, a ascese é como um movimento circular, uma escada viva, uma circulação permanente nos dois sentidos.

E a chave final, num último momento, no tempo limítrofe, no ponto assintótico, alfa e ômega reunidos, que se aparenta ao que o Apocalipse chama de “primeira ressurreição” – justamente a ressurreição interiorizada aqui e agora – e que a Filocalia nomeia como o “arrebatamento da inteligência”, sem mais, e que somente a experiência pode testemunhar: uma saída do tempo e do espaço, que não é a morte espacial e temporal do corpo, mas sua transfiguração na luz incriada, um êxtase teofânico indizível – embora transmissível, como num espelho ou num enigma, de coração para coração, de Deus para o homem, de homem para homem. Entre ilusão e ilusão, a Filocalia não poderia fornecer aqui a prova que falta: a própria transcendência. Mas ela a indica a quem desejar e quiser ouvir, e, no limite, que não queira ouvir, graças a ela, nada senão a música do coração, a música da boa nova: “O Reino de Deus está em vocês”.

A ATUALIDADE

Muito antes da Subida do Monte Carmelo de São João da Cruz, os escritos hesiquiastas representaram junto com o Evangelho que nenhum caminho traçado no espaço e no tempo do mundo conduz ao último, que o caminho é uma coisa só com a verdade e a vida, e que ele é Cristo em pessoa. Vale dizer que a marcha consciente em direção ao último não é possível senão nas condições de Cristo, que não são forçosamente as mesmas do século.

Assim é que as condições de Cristo – a imolação, a compaixão, a glorificação – não são simples caminhos previamente traçados. Não há outra coisa a fazer aqui do que responder claramente à questão que o Ressuscitado coloca, e à ordem que ele dá: “Você me ama?[3]”, e “Siga-me[4]”. Quem responder é contemporâneo do Ressuscitado. Mas sempre no mesmo sentido: aparentemente no intemporal, mas em verdade na transfiguração do tempo, retomando e seguindo aqui e agora, hoje como ontem, e também amanhã, o trabalho de interiorização que a antologia testemunha. Trabalho de luto, todo uma apagar-se, todo um enterrar-se nos estratos originais do mundo (“colocar-se sob a criação”, diziam os monges), lá onde se radicaliza a praxis psicanalítica moderna, uma vez que a Filocalia não assinala ao trabalho de luto nenhuma finalidade utilitária, nenhuma busca de terapia. A terapia se faz por si mesma, com a ascensão da hesíquia à nepsis, à sobriedade e à vigilância, à ascese da inteligência, e finalmente à alegria ontológica, ao “Eu sou” divino.

“Penso, logo existo”. Toda a modernidade se resume a isso. O “eu sou” se faz acompanhar do “eu penso”, portanto do exercício da inteligência. Mas Descartes reconstruía o mundo a partir do “eu penso”. É o contrário de uma ascese no vazio. Também para os hesiquiastas, um milênio antes, o “Eu sou” fazia causa comum com o “eu penso”. Mas o “Eu sou” era o Nome bíblico, o Nome revelado de Deus, e o “Eu penso” de Deus era o homem, e este não tinha que fazer outra coisa do que entrar de corpo e alma no “Eu sou” de Deus. Ora, o “Eu sou” de Deus, como a sarça ardente, é o fogo que não consome jamais. É a luz incriada. Os monges repetiram isso durante toda a Idade Média Bizantina: a atividade própria da inteligência, o “Eu penso” bíblico, o “Eu penso” Deus, é a prece, e o homem que pensa Deus com toda sua inteligência em prece pode tornar a si em seu próprio corpo uma sarça ardente, lugar de Deus, lugar da luz incriada, portanto lugar de revelação e sinal de contradição, o próprio sinal que une e separa a Filocalia da modernidade.

De todo modo, o encontro é difícil. Pois não se trata aqui de simplesmente refletir sobre a modernidade. Nem de apresentar a Filocalia como uma documento exótico, exumado da caverna da memória que consiste geralmente a Idade Média Bizantina. Trata-se de introduzir na modernidade uma antecipação tanto mais ignorada por ela na medida em que a precede e a fundamenta na ideia de que a inteligência é a origem, mas atribuindo aos termos de “origem” e “inteligência” um significado diferente. A partir daí, ou a Filocalia permanece encerrada com o Império Bizantino e todo o Oriente cristão nas oubliettes, nos impasses e nas captações da história, ou, tomando seu lugar, o último, mas mesmo assim um lugar que é seu, e que no fundo é o primeiro, na imensa recapitulação que é também o mundo moderno, faz parte das instâncias da memória e da profecia que informam a marcha do século sobre as modalidades e a finalidade de sua fuga sempre para adiante.

Mas o dilema não tem razão de ser. A Filocalia deve afrontar o mundo moderno. Ela já viu outros mundos. Ela que atesta o retorno das inversões e das captações que foram o paganismo antigo e o cristianismo imperial, pode ainda atestar, na interioridade das consciências, o retorno das inversões e das captações atuais, aquilo que se convencionou denominar hoje em dia de neopaganismo e de pós-cristianismo modernos. Acima de tudo, ela permanece aquilo que ela é: um santuário eclesial da revelação bíblica, uma vez que ela faz e refaz a convocação original da Igreja a todos os cristãos, chamados principalmente a amar a Deus na solidão e na imolação do coração quebrantado, e, em segundo lugar, mas um segundo lugar que atesta o primeiro, a trazer o amor a Deus na compaixão e no amor ao próximo. Enfim, ela é o amor das saídas luminosas do mundo, o amor à beleza original e última. E aí ela coloca em causa a relação mais rigorosamente pessoal e a mais infinitamente aberta que o homem pode ter com a encarnação da  vida eterna e a transfiguração da carne mortal. Assim, não existe dilema, mas apenas o paradoxo evangélico: “Feche a porta e ore ao seu Pai[5]”. A atualidade da Filocalia, por tão real que ela seja diretamente para a abertura infinita, permanece não obstante o mais secreta possível.




[1] Marcos o Asceta, Dos que pretendem ser justificados pelas obras, 30.
[2] Em nossa tradução para o português, de modo geral optamos traduzir nous pela palavra “intelecto”, no sentido que lhe é atribuído por René Guénon, como sendo o equivalente de Buddhi, o “intelecto superior”, primeiro grau da manifestação de Atmâ.
[3] João 21: 16.
[4] João 21: 19.
[5] Mateus 6: 6.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

François Neyt & Paula de Angelis-Noah: O monaquismo palestino em Barsanulfo e João de Gaza


O MONAQUISMO PALESTINO




1. GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DO MONAQUISMO PALESTINO


Os primeiros monges palestinos, quando não viajavam por mar, devem ter se utilizado das excelentes estradas imperiais romanas. Elas sulcavam o país ao longo das planícies costeiras que ligavam o Egito à Síria e se estendiam de Jerusalém para o interior. O peregrino que vinha de Alexandria dirigia-se então para Pelusia e Gaza para voltar-se em seguida para Eleuterópolis, Jerusalém e Belém , ou então continuava sua rota para Cesaréia, Tiro e Sídon. Cesaréia continuava sendo a capital dos procuradores nos tempos de Tibério e Nero, sede do governo militar sob a autoridade do Dux Palestinae. No domínio eclesiástico, o bispo de Jerusalém ocupava uma posição privilegiada, embora permanecesse submetido ao metropolita de Cesaréia. Somente no Concílio de Calcedônia, em 451, o Patriarcado de Jerusalém foi reconhecido.


Com suas importantes cidades, Belém e Jerusalém, duas regiões retêm nossa atenção, por terem abrigado os dois grandes personagens fundadores do monaquismo palestino: santo Hilário viveu nos arredores de Gaza, a cidade “amiga das musas”, célebre por sua escola de sofistas que se tornou cristã; são Caritão habitou a solidão do deserto da Judéia que se estende do vale do Jordão até o mar Morto.

É útil, para começarmos, lembrar as principais correntes ascéticas que precederam o monaquismo egípcio e palestino e cujos vestígios encontram-se nas primeiras produções da literatura monástica. A teoria de Platão referente à unificação da alma que passa da diversidade à unidade e à beleza havia se espalhado por toda a bacia do Mediterrâneo e encontrara seu fundamento bíblico em Fílon. Dentre as filosofias da Antigüidade, o ideal pitagórico e o estoicismo de Epíteto eram bastante conhecidos. As tradições judaica e judaico-cristã haviam desenvolvido tendências ascéticas bem ilustradas no Testamento dos doze patriarcas, e Alexandria era, ao lado de Atenas, um prestigioso centro de reflexão e sabedoria.


No início da literatura monástica encontram-se, ao lado dos textos sapienciais da Septuaginta, alguns escritos ascéticos de Nag Hammadi[1]. Os ensinamentos de Silvano, as sentenças de Menandro e de Sextus, aparecem tanto nas Cartas de Antônio quanto nos escritos de são Pacômio[2]. E Armand Veilleux mostrou que o gnosticismo teve um importante desenvolvimento ao mesmo tempo e nos mesmos meios geográficos freqüentados por monges discípulos de Pacômio.


Quando o monaquismo cristão difundiu-se no Egito no início do século IV, ele foi modelado com múltiplas correntes ascéticas que se unificavam em torno da mensagem evangélica. Ele reflete incontestavelmente uma forma de inculturação[3] cristã nova e forte. Esta traz em si a memória daqueles que professaram a fé e dos mártires, vítimas de muitas perseguições. Assim, o monge egípcio, conduzido ao deserto pelo Espírito, enfrenta aí os demônios seguindo o exemplo de Cristo. Esta tradição rapidamente prolongou-se por toda a Palestina, reaparecendo sob outras formas na Capadócia, na Mesopotâmia, por todo o Oriente cristão e no Ocidente.


As origens do monaquismo de Gaza foram registradas por são Jerônimo e santo Epifânio. Santo Hilário (291-371), nasceu perto de Gaza uns vinte anos antes do édito de Constantino em 313. No Egito, Antônio aproxima-se dos quarenta anos, Pacômio e Macário o Grande, fundador de Sceta, são da mesma geração de Hilário, todos nascidos antes do início do século IV. O local de nascimento de Hilário, Thavatha, oito quilômetros a sudeste de Gaza, se tornará renomado com a fundação do mosteiro do abade Seridos.


A Vita Hilarionis, escrita por são Jerônimo por volta de 390, parece acelerar o processo da história do protagonista: aos quinze anos, ele já freqüentava a escola de Alexandria e passara algumas semanas com Antônio, cuja reputação já era conhecida em todo o Baixo-Egito. Como seus pais haviam falecido, estimulado por santo Antônio, ele distribuiu sua herança e estabeleceu-se na solidão, não longe de sua cidade natal. Sua cabana estava construída próxima ao mar, onze quilômetros a sudeste de Maiouma, o porto de Gaza. Santo Hilário irá morara aí durante vinte anos, acolhendo outros irmãos numa colônia informal de eremitas. Assinalemos a propósito que a família do historiador Sozomeno, que nasceu em Betiléia, perto de Gaza, em 380, foi marcada pelo movimento monástico e, em especial, por santo Hilário. Escrevendo mais tarde em Constantinopla em 440, Sozomeno iria lembrar-se dos monges de Gaza e em particular do abade Silvano e de seu grupo. Surge assim uma certa continuidade na tradição monástica da região[4]. Não longe dali, em Besanduce, perto de Eleuterópolis, um dos presumíveis discípulos de Hilário, Epifânio, monge palestino de origem judaica, fundara uma das primeiras comunidades. Quanto a Hilário, ele deixou definitivamente a Palestina em 356, mesmo ano da morte de Antônio, para fugir ao afluxo de seus visitantes. Depois de muitas etapas, encerrou sua vida em Chipre, aonde foi enterrado. Um discípulo roubou seu corpo e o devolveu a Gaza.


Notemos que são Jerônimo, que vivia em Belém, na maior concentração religiosa urbana da Palestina, a dois passos dos mosteiros da Judéia, não faz nenhuma alusão a essas realidades. E, no entanto, rezava uma tradição que homens, fugindo à perseguição, haviam desenvolvido eremitérios, lugares de reunião de vida anacorética, nas grutas de Calamon, perto do mar Morto. E havia também a lembrança de Elias, de Eliseu, de são João Batista, além daquela referente às tentações do próprio Cristo no deserto.


A grande figura fundadora do monaquismo nesta região é a de santo Caritão, seguido de santo Eutimo. O monte Wadi Khureitun conservou o nome do eremitério de são Caritão que foi um mosteiro ativo até o século XIII.


A Vida de são Caritão foi redigida por um monge anônimo do século VI. Confessor da fé na Ásia Menor sob Aureliano, Caritão veio a Jerusalém em peregrinação e fundou seu primeiro mosteiro em Aïn Fará próximo à única nascente do deserto, onze quilômetros a nordeste de Jerusalém. Outras fundações lhe são creditadas a seguir, Douka e Pharan. Os três lugares, bastante conhecidos, corroboram os dados da Vita Charitonis e fazem de Caritão um fundador incontestável do monaquismo palestino. Depois de Caritão, vieram Eutimo e seus discípulos: Passarion, que construiu um hospício para os pobres perto de seu cenóbio em Jerusalém, Martyrios e Elias, monges e patriarcas, Gerásimo e seu discípulo Kyriakos, Saba e Teodoro, e outros ainda. A realidade histórica é ainda mais elaborada e mais complexa, integrando monges de diferentes culturas e de formações algumas vezes opostas. Essas figuras centrais do deserto da Judéia vinham da Ásia menor, da Síria e do Egito, tendo recebido previamente uma sólida formação.


Como escreve Leah Campagnano di Segni, o monaquismo que floresceu sob seu impulso e sua direção certamente era mais devedor de outras influências do que das tradições embrionárias e daquela de Caritão. Apesar destas reservas, Caritão permanece sendo um arquétipo, um fundador. E a afirmação do autor da Vita reivindicando para seu protagonista o papel de pai do monaquismo não é injustificada. A ligação genealógica indicada pela hagiografia é bastante clara. Ele tinha sob seus olhos os mosteiros do patriarcado de Jerusalém que estavam sob a condução indiscutível de são Abas e de são Teodoro e dos higoumenos que os sucederam com o título de arquimandritas dos monges.


Cirilo de Scythopolis havia mostrado que são Abas e são Teodoro dependiam do ensinamento de Eutimo e notado que este se deixava guiar em sua atividade de fundador do monaquismo pelo exemplo do eremitério de Pharan aonde ele havia passado seus primeiros anos de vida anacorética.. O autor anônimo da Vita Charitonis completa a cadeia das tradições fazendo do fundador de Pharan e dos dois outros lugares monásticos o pai dos centros mais antigos do deserto da Judéia.


O cristianismo vai se propagar na Palestina a partir do século IV, com o apoio dos imperadores cristãos, com o afluxo de peregrinos aos lugares santos e com a aparição progressiva dos primeiros mosteiros urbanos. Novos mosteiros aparecem também no deserto[5]. O movimento acentua-se ainda nos séculos V e VI no deserto da Judéia e na região de Gaza. Dois aspectos irão chamar nossa atenção: Gaza, lugar de passagem, e Gaza, lugar de acolhida.



GAZA, LUGAR DE PASSAGEM


Sobretudo em seu último quarto, o século IV verá numerosos viajantes vindos da Palestina prolongar seu périplo até o Baixo Egito com a intenção de visitar os lugares monásticos e neles encontrar os Padres do monaquismo. São Jerônimo ensina que Rufino partiu para Nitria para encontrar Macário. Rufino permaneceu seis anos em Alexandria junto a seu amigo Dídimo o Cego e prolongou sua viagem, chegando até Pispir. Por volta de 385, o próprio são Jerônimo fez a viagem a Alexandria e Nitria. Paládio esteve com são Menos, em Nitria e nas Kellia. Evagro, originário do Ponto, discípulo de são Basílio e ordenado diácono por são Gregório de Nazianze, fugiu de Constantinopla, permaneceu algum tempo na Palestina, e depois, sob o aconselhamento de Melânia, foi se estabelecer nas Kellia no Egito até sua morte em 399. Germano e Cassiano, residindo em Belém, também tomaram a rota do Egito. Estes poucos exemplos testemunham o quanto as últimas décadas do século constituem a idade de ouro de Nitria e de Sceta.


A História lausíaca, escrita por Paládio, e dedicada a Lausus, o capelão do imperador Teodósio I, apresenta as grandes figuras monásticas deste período de prosperidade das comunidades semi-anacoréticas das Kellia e de Nitria. Quando Paládio organizou seu relato, por volta de 419-420, os conflitos teológicos já haviam estourado em Alexandria. Depois da famosa carta contra o antropomorfismo, o patriarca Teófilo condenou o origenismo no Sínodo de Alexandria em 400. Trezentos monges, junto com alguns êmulos de Orígenes, fugiram de Nitria para Jerusalém, Scythopolis e Constantinopla.


As primeiras devastações de Sceta pelos Maziques situam-se perto de 407. O movimento dos monges do Baixo-Egito para a Palestina, que havia diminuído com a morte dos dois Macário, acentua-se então resolutamente. Os monges egípcios traçam cada vez mais os caminhos, seja para o mar Vermelho, seja para a parte oriental do Sinai e a Palestina. No início do século V, o monaquismo palestino é chamado para um grande vôo.



GAZA, LUGAR DE ACOLHIDA MONÁSTICA


A região de Gaza, de Thavatha até Maiouma, ao longo da costa, torna-se uma encruzilhada aonde se encontram os buscadores de Deus vindos do norte e do sul, muitas vezes pela rota de Jerusalém: o abade Silvano e seus onze discípulos deixaram Sceta, instalaram-se por algum tempo no Sinai, depois se estabeleceram na região de Gaza, perto de Gérara, no Ouadi Ghazzeh. Dentre eles, distingue-se um mestre espiritual, Zenon o Profeta, que terá por discípulo um príncipe georgiano, Nabarnugi, mais conhecido pelo nome de Pierre de Ibéria, que veio a falecer perto de Gaza em 488; o próprio Zenon faleceu recluso em 451, ano do Concílio de Calcedônia. Outro monge célebre na região foi Isaías de Gaza; segundo a biografia escrita por Zacarias o Escolástico, Isaías era um monge egípcio que vivia em um mosteiro de cenobitas, e que se retirou para a solidão de Sceta antes de avançar para o sul da Palestina, aonde morreu recluso em 491; ele escreveu um ascéticon dentro da mais pura tradição dos Padres egípcios.


Sob os imperadores Justino e Justiniano, as igrejas e os mosteiros da Palestina irão florescer. Na região de Gaza, o mosteiro do abade Seridos conheceu um período de maturidade com as grandes figuras de Barsanulfo, de João o Profeta, de Dositeu e Doroteu. A Correspondência reflete admiravelmente a maturidade religiosa que reinava neste mosteiro; ela também assume o melhor das tradições monásticas egípcias, sem esquecer os escritos dos grandes Capadócios e a literatura monástica da época: os Padres do Egito, Isaías, Evagro, a História dos monges do Egito, a História lausíaca de Paládio, a Vida de Malchus de são Jerônimo e os comentários de são João Crisóstomo sobre são Mateus.


Na região de Gaza, como em outros lugares na Palestina, e cada vez mais, diversas influências vindas do Egito e do Oriente, sobretudo da Ásia Menor, entrecruzam-se, dando ao monaquismo palestino sua fisionomia própria. Uma questão das mais interessantes em relação ao nosso propósito foi levantada por dom L. Regnault: “Diante da difusão maciça de apoftegmas na Palestina a partir dos séculos V e VI, e a presença na coleção alfabético-anônima de quase sessenta peças referentes aos monges palestinos de origem ou de adoção, podemos nos perguntar se as duas grandes coletâneas alfabético-anônima e sistemática não foram constituídas na Palestina.”


A presença do abade Silvano e de seus discípulos colocara em evidência o ambiente de Gaza; ela também revelou as relações que ligavam os meios monásticos com o dos sofistas cristãos de Gaza refratários ao Concílio de Calcedônia. O Ascéticon de Isaías, já assinalado, é igualmente um elemento importante nessa tradição. Da mesma forma, a confluência de numerosos testemunhos relacionados com as tradições monásticas do Baixo-Egito, o uso abundante da tradição apoftegmática nos escritos da região, fazem de Gaza um centro privilegiado desta reunião de Padres de sorte que esta região convém perfeitamente à hipótese proposta por dom Regnault.


Mais tarde, outro compilador anônimo recolherá preciosamente a Correspondência de Barsanulfo e de João o Profeta, prolongando assim a veneração pelas Palavras dos Antigos e apresentando a tradição dos Padres do Egito sob uma nova luz, espelho da vida cotidiana dos solitários de Gaza, testemunho tão único quanto indiscreto, do estado de alma daqueles que vinham a consultar os dois sábios de Gaza no século VI.


As controversas origenistas que haviam conhecido um tempo de calmaria durante o século V, retornaram com força nos primeiros anos do século VI, e a Correspondência de Barsanulfo lembra com conhecimento de causa o quanto os escritos dos Padres são “úteis à alma”, quando os separamos das especulações gnósticas sobre a pré-existência da alma, a apocatástase e a cristologia.


O equilíbrio e a sabedoria do ensinamento dos Padres de Gaza refletem de modo incontestável um ápice da literatura monástica da Palestina. Seu discípulo Doroteu fundou por sua vez seu próprio mosteiro em Gaza e Maiouma, conforme afirma João Moschus. Isto se passa depois da morte de João o Profeta e a reclusão definitiva de Barsanulfo, em meados do século VI. As Didascalias de Doroteu de Gaza situam as bases da ascese cristã e monástica dentro da perspectiva da história da salvação; elas serão lidas por toda a região e provavelmente também no Sinai. Alguns séculos mais tarde, Teodoro Studita fará o elogio de Doroteu defendendo vigorosamente a ortodoxia deste último em seu testamento espiritual.


Na segunda metade do século VI, depois do Concílio de Constantinopla de 553, Cirilo de Scythopolis põe-se a escrever numerosas biografias monásticas referentes a algumas figuras importantes, dentre as quais são Eutimo, são Sabas, João o Hesiquiasta, Kyriakos e outros.


João Moschus, no início do século VII, apresenta-se como um dos últimos testemunhos desta tradição monástica. Ele vai ao Egito, visita numerosos lugares, e em sua obra O terreno espiritual, retraça com precisão os lugares geográficos do deserto da Judéia e descreve, com ingenuidade desconcertante, a vida dos monges que encontrou. Mas as páginas da história logo se tornarão sombrias para o cristianismo e o monaquismo palestino. Três séculos após o édito de Constantino, os Persas invadiram Jerusalém, em 614, e entregaram a cidade ao massacre por três dias; duas décadas depois, sob o novo patriarca Sofrônio, a dominação árabe iria abrir um outro período na história palestina.



2. FONTES E CRONOLOGIA


A Correspondência apresentada é obra de dois santos monges reclusos, Barsanulfo e João o Profeta, que viveram na região de Gaza no início do século VI. Do conjunto de documentos examinados, é precisamente nas informações contidas na coletânea de cartas que se deve dar mais crédito. Referindo-se a tradições mais antigas, ela contém, com efeito, os dados autobiográficos de seus autores, constituindo um testemunho de primeira mão. Outras fontes podem ser mencionadas, a saber:



A Vida de Dositeu – Esta Vida, conhecida a partir dos trabalhos do padre Brum e de dom Regnault, é uma fonte importante para nosso conhecimento do cenobium do abade Seridos. A enfermaria foi construída aí por Doroteu sob o aconselhamento de Barsanulfo e João. O conteúdo das cartas 220 a 223 endereçadas provavelmente a Dositeu, sofrendo de tísica e próximo da morte, deve ser colocado em paralelo com este documento. Este Dositeu foi noviço no tempo em que Doroteu era mestre dos noviços.



As Didascalias do abade Doroteu – As Didascalias do abade Doroteu são uma fonte de primeira, pois este abade foi formado por Barsanulfo e João, tendo a seguir fundado seu próprio mosteiro, onde ele as escreveu. Muitas indicações sobre a estadia de Doroteu no cenobium de Seridos e sobre suas relações com os dois mestres encontram-se aí.



O prefácio anônimo – o prefácio anônimo que precede as Didascalias repousa sobre uma tradição manuscrita menos antiga, como o Vaticanus Graecus 663 do século XV e distingue dois Doroteu e dois Barsanulfo: ele defende a ortodoxia dos personagens que nos ocupam, enquanto que taxa os outros dois de “acéfalos entre os acéfalos (...) anatematizados por são Sofrônio em seu libelo[6]”. Três argumentos são fornecidos para defender a ortodoxia dos Padres de Gaza: o testemunho do hierarca na ocasião, o santo patriarca Taraise de Constantinopla (+806), e de outros personagens dignos de fé, gregos e orientais; a representação de Barsanulfo sobre a toalha do altar na Grande Igreja (Hagia Sophia em Constantinopla) ao lado dos santos Antônio, Ephrém e outros; e o testemunho do próprio Teodoro Studita.



Outros testemunhos literários – outros testemunhos literários nos ensinam sobre a existência do cenobium de Seridos em Gaza, sobre as vidas de Barsanulfo e João o Profeta e nos fornecem precisões cronológicas úteis:


Leôncio de Nápoles – na vida do patriarca de Alexandria, São João o Esmoler, que este escreve no século VII, aparece menção ao cenóbio do abade Seridos.


Evagro o Escolástico – em sua História Eclesiástica, consagrou um capítulo de sua obra a Barsanulfo. Vailhé[7] nota a propósito: “No momento em que Evagro escrevia, ou seja, em 593, Barsanulfo havia morrido há mais de cinqüenta anos, o que nos leva ao ano 540 aproximadamente, data provável da reclusão definitiva de Barsanulfo e de sua morte”. A tradição popular assegurava que Barsanulfo continuava vivo. Para desestimular os boatos, conforme diz Vailhé apoiado nos escritos de Evagro o Escolástico, o patriarca de Jerusalém, Eustochios, ordenou já no início de seu patriarcado, em 552 ou 553, a destruição da cela do recluso, mas uma chama ardente pôs os operários em fuga.


João Mochus – em seu O campo espiritual, menciona a partida de Doroteu de Gaza para o cenóbio do abade Seridos e nos mostra s relações de Doroteu com Zózimo, o autor das Entrevistas.



Menaias, sinaxários e martiriológios – a veneração por são Barsanulfo em Constantinopla, desde o século X, sobressai com a presença de seu nome em certos manuscritos do Sinaxário, livro litúrgico que reúne breves elogios a cada um dos santos venerados em cada dia; estas poucas linhas são lidas no ofício das matinais (orthros), entre a sexta e a sétima odes. Em particular, a presença do nome de Barsanulfo nos dois manuscritos que são os principais testemunhos da recensão (exame crítico) do Sinaxário realizado em Constantinopla no final do reinado do imperador Constantino IX Porfirogeneta atesta sem hesitação que ele era venerado como santo na Grande Igreja (Hagia Sophia) na data de 6 de fevereiro, já desde o século X; este ponto é confirmado pela menção a são Barsanulfo em outro testemunho antigo do sinaxário grego[8]. Mas a ausência do nome de Barsanulfo em várias outras recensões do sinaxário mostra que seu culto não estava estabelecido em toda parte.


Os documentos georgianos parecem também mostrar que seu culto espalhou-se a partir de Constantinopla: com efeito, o calendário palestino-georgiano copiado por João Zózimo na segunda metade do século X, que reflete a aplicação hierossolomita, não menciona seu nome, apesar do manuscrito conter suas obras. Entretanto, algumas dezenas de anos mais tarde, um livro litúrgico georgiano (menaia) copiado no mosteiro da Santa Cruz em Jerusalém em meados do século XI, anuncia em 6 de fevereiro a memória “de são Barsanulfo, de seu discípulo João e de são Doroteu”. Sabemos que este manuscrito integrou maciçamente as festas bizantinas, chegando a substituir os antigos usos de Jerusalém; esta comemoração é um indício a mais. Sua forma mesmo, acrescentando os nomes de João e Doroteu à memória de Barsanulfo, levanta suspeitas: tudo se passa como se algum monge de Jerusalém, leitor assíduo dos veneráveis ascetas, tendo encontrado em um exemplar vindo de Constantinopla o nome de Barsanulfo ausente da regra palestina, considerou boa providência acrescentá-lo junto com seus dois discípulos; se esta hipótese é exata, a menção de Barsanulfo no manuscrito “P” é de origem constantinopolitana.


Outro indício da origem constantinopolitana deste culto pode estar na ausência do nome de Barsanulfo nos martiriológios ítalo-gregos, ainda que, como veremos, uma Vita Barsanuphii faça alusão a um traslado das relíquias do santo para o sul da Itália.


Em todo caso, foi apenas com o Synaxaristes de são Nicodemo o Hagiorita que Barsanulfo será gratificado com uma curta nota, pois os sinaxários de modo geral não lhe consagravam mais do que uma única linha[9]. Mas Nicodemo, como sabemos, pesquisou diversos elementos, e notadamente a Correspondência que apresentamos aqui, cuja primeira edição foi feita por ele. Segue-se que, salvo a descoberta de uma fonte desconhecida, seu testemunho não tem muito mais valor histórico daquele que podemos nós deduzir da mesma leitura. Em todo caso, são Nicodemo despertou o interesse pelos nossos santos: os editores seguintes desta coletânea moderna de Vidas de santos vão se inspirar ainda mais daqui para frente com a Correspondência dos santos monges; outros elementos biográficos serão retomados nas adaptações recentes do Sinaxário [10] publicadas pela Igreja ortodoxa. O abade Seridos é venerado aí em 13 de Agosto, junto com são Doroteu.


U. Zanetti, s.j., descobriu recentemente que o Menaia georgiano, estudado por G. Garitte, contém um ofício a são Barsanulfo nas folhas 312 e 322/323. Este texto parece ser ainda inédito. O mosteiro russo de são Panteleimon no monte Athos, possui um ofício (akolouthia) de são Barsanulfo e de seu amigo João. Isto nos lembra o quanto são Barsanulfo era honrado em Constantinopla já nos séculos IX e X, segundo o testemunho pessoal de são Teodoro Studita. Isto mais uma vez confirma a origem constantinopolitana de seu culto.


Quanto ao martiriológio romano, um documento redigido no século XVI e que reflete apenas a tradição dos martiriológios históricos da Idade Média, encontramos sob a data de 11 de junho: “apud gazam palestinae sancti Barsanuphii anachoretae sub Justiniano imperatore”.


Vita Barsanuphii – uma Vita foi escrita por um clérigo da igreja de Oria, não longe de Brindisi na Itália do sul, por volta do final do século XII e início do XIII. Alguns extratos foram publicados nas Acta Santorum. As informações que parecem mais autênticas nos são conhecidas a partir de outras fontes; estes textos aludem também a uma translação das relíquias de Barsanulfo para a Itália no século IX. Estas parecem ter sido esquecidas durante a invasão dos sarracenos e foram encontradas em 1170. A tradição reporta que o crânio do “bem-aventurado Barsanulfo” foi transportado por via marítima com grande veneração. Esta preciosa relíquia foi confiada ao bispo Teodoro de Oria homem famoso por sua santidade em vida e sua doutrina. Ele foi escolhido dentre os bispos da região compreendida entre o monte Gargano e o cabo de Salento. Assim, a cidade de Oria foi sempre protegida e o perigo da guerra passou longe daí. Em Oria, são Barsanulfo é festejado em 6 de fevereiro conforme o calendário local. Ainda hoje, segundo a tradição, algumas relíquias do santo continuam conservadas na catedral. Também um fragmento, de grande valor, nos fala sobre a origem da família de Doroteu em Gaza.


Destes documentos, repetimos, os dados históricos e cronológicos mais importantes provêm da Correspondência. Senão vejamos, acompanhando as cartas:


- as cartas 252 a 338 fornecem ensinamentos preciosos sobre as etapas da vida monástica de Doroteu de Gaza que estão relacionados às Didascalias publicadas e comentadas nas Fontes cristãs comentadas por dom Regnault. É preciso acrescentar a este conjunto que fornece elementos de cronologia relativa, as cartas 220 a 223, endereçadas provavelmente a Dositeu, de quem, aliás, possuímos uma Vita;


- as cartas 568-569 aludem à peste que se espalhou pelo império Romano entre os anos de 542 e 543;


- as cartas 600 a 607 tratam de questões referentes ao origenismo. Elas devem ser vistas em conjunto com a história eclesiástica e com a dos monges origenistas da Palestina no século VI. Os primeiros incidentes aconteceram em 514, ano em que Nonnos recrutou seus adeptos; as discussões prosseguiram até o concílio ecumênico de Constantinopla em 553. As cartas que se referem a estas discussões situam-se provavelmente logo antes do édito do imperador Justiniano de 543, que condenou o origenismo em diversas passagens do Peri Archôn. João o Profeta escreveu muitas cartas referindo-se às acaloradas discussões origenistas dos anos 537-540; por sua vez, Barsanulfo ainda ditava suas cartas entre os anos 542-543. Na impossibilidade de nos apoiarmos sobre dados mais precisos, pensamos poder situar entre os anos de 543-544 as mudanças que o mosteiro sofreu após as mortes do abade Seridos e de João o Profeta, a reclusão total de Barsanulfo e a partida de Doroteu. A condenação de Orígenes, Dídimo e Evagro no V Concílio data de 553;


- a carta 792 trata da “luta pela fé”; um bispo foi enviado a Barsanulfo e João de Gaza pelo imperador para pedir-lhes aconselhamento;


- as cartas 820 e 821 relatam que alguns maniqueus tomaram o caminho de Jerusalém para serem batizados em outro lugar. João o Profeta levou a coisa a sério. A carta 821 faz menção a uma ordenação imperial contra os pagãos e os cismáticos, promulgada pelo imperador Justiniano em 528. As cartas dos Padres de Gaza eram provavelmente endereçadas ao Patriarca Pedro de Jerusalém;


- a carta 835 relata que importantes personagens de uma cidade pretendiam impor uma taxa aos navios que chegavam ao cais; esta taxa deveria ser confiada à Igreja. João de Gaza estima que o assunto não é de sua alçada.


Muitas cartas, compreendidas entre as de números 570 e 599, fornecem numerosas indicações referentes às vidas de João o Profeta, Seridos e de seu sucessor Elién.


Face a esses dados, parece prudente levar em conta a distribuição das cartas na coleção para que o leitor possa sempre se referir aos textos nos quais nos apoiamos. Neste sentido, a apresentação dos volumes e dos comentários está ordenada em três fases segundo a própria ordem das perguntas e das respostas:


- correspondência essencialmente endereçada aos solitários: cartas de 1 a 224;


- correspondência dirigida a irmãos, cenobitas e sobretudo a Doroteu de Gaza: cartas de 225 a 616;


- correspondência dirigida principalmente a leigos cristãos e a bispos: cartas de 617 a 850.



3. VIDAS DOS SANTOS BARSANULFO E JOÃO DE GAZA



Por sua situação privilegiada às margens das areias entre o Egito, a Palestina e a Síria, a região de Gaza, próxima do mar, foi chamada, no final do século IV, a tornar-se uma terra de acolhida para muitas comunidades monásticas.


O abade Seridos veio estabelecer-se perto de Thavatha, lugar ilustre pelo nascimento de Hilário, um dos fundadores do monaquismo palestino. Isto foi nos últimos anos do imperador Anastácio que morreu em 518, ou, mais provavelmente, no início do reinado de Justino. O período de florescimento do cenobium do abade Seridos cobre ao menos vinte anos, marcados pelo édito de Justiniano sobre os pagãos em 528 e a grande epidemia de peste dos anos 542-543.


O local escolhido não era apenas favorável à implantação de uma comunidade de cenobitas, mas ainda oferecia possibilidades para uma vida solitária aos moges desejosos de levar uma vida de kelliota ou de hesiquiasta, ou seja, uma vida reclusa. Não longe dali, na direção sudoeste, corria o rio de Gaza que, nos períodos de cheia, tornava-se perigoso para quem estivesse do lado de Ascalon. O mar, a no máximo um quilômetro do cenobium, era um ponto de comunicação com o Egito, berço do monaquismo cristão. A Correspondência evoca uma viagem de barco feita por João de Beersheba ao Egito.


Várias tentativas foram feitas para encontrar o mosteiro do abade Seridos. Em uma carta ao abade Brun, F. M. Abel identifica o estabelecimento do abade Seridos com o Magdel Thoutha de Pedro o Ibero: “Um palmeiral com algumas ruínas, escreve ele, repovoada por algumas famílias parabes, ao sul do wâdi Ghazzeh, conservou o antigo nome sob a forma Khirbet Oumm ET-Toût. Perto dali, o túmulo do sheikh esh-Shobâni marca provavelmente sobre uma iminência arenosa o lugar do mosteiro de Seridos. Nenhuma escavação foi feita nestes lugares...”


O prólogo da Correspondência de Barsanulfo e de João o Profeta é precedido por um título que varia conforme o manuscrito. Duas tradições aparecem. A primeira, sustentada por manuscritos excelentes, fornece os nomes dos dois anciãos Barsanulfo e João, reclusos no cenobium nas cercanias de Gaza. Suas respostas eram transmitidas aos seus consultantes por intermédio do superior, o abade Seridos que era também o servidor dos dois anacoretas. A segunda tradição manuscrita informa que João era discípulo e companheiro de ascese (synasketes) de Barsanulfo. Apesar de trazer alguns dados sobre o gênero literário e os destinatários das cartas, o prólogo não traz nenhuma outra informação útil sobre a vida dos Padres de Gaza.



A VIDA DE SÃO BARSANULFO



Ela se inscreve em primeiro lugar na fascinação do silêncio que habita o deserto. Calcando passo a passo os caminhos da solidão, habitado por Aquele que conduz pela Palavra, Barsanulfo foi o único dos Padres de Gaza a receber o título de “venerável ancião”. O epíteto geron, Ancião, não tem nenhuma relação com o patronímico semítico; trata-se de uma denominação copta bem conhecida na tradição dos Padres do Egito. É chamado de Ancião, o Velho que se distinguiu pelo conjunto de sua vida ou pelo exercício de uma virtude em especial. No dizer de Paládio, Antônio, quando ainda vivo, já era chamado simplesmente de “o Grande”.


Barsanulfo é o “grande Ancião” de Gaza. De origem egípcia, ele já era, ao que parece, célebre nos meios monásticos no momento em que aceitou estabelecer-se no cenobium do abade Seridos. Outros fizeram barulho para acolher os dois Padres em seus mosteiros; Seridos permaneceu quieto e obteve de Deus esta graça.


Toda sua vida é à imagem de sua cela e de sua reclusão: um espaço habitado pelo silêncio à escuta da Palavra divina, entre o combate e a oração; esta é a fonte da qual Barsanulfo extraiu o segredo de suas respostas aos que o consultavam.


Como o declara o próprio Grande Ancião na primeira carta que possuímos dele, é sobre o impulso do Espírito Santo que ele ditava a Seridos, abade do cenobium, as respostas às questões essenciais que surgiam no correr dos dias na vida de seus correspondentes, solitários e cenobitas, ou ainda às perguntas feitas por bispos e leigos cristãos diante de decisões que teriam que tomar.


São Barsanulfo é um homem de Deus, testemunho, por sua vida e seu ensinamento, da grande tradição cristã oriental surgida a partir de Antônio e dos Padres dos desertos egípcios. Sua Correspondência testemunha um enorme respeito pelos homens que ele encontra. Como já explicamos, sua pedagogia adapta-se a cada um dos seus correspondentes, em mesma situação que ele, com grande cortesia e liberdade espiritual. Ela está fundamentada nas rupturas necessárias para fazer crescer o homem interior, no caráter importante mas relativo da ascese diante da salvação dada por Jesus Cristo e a misericórdia do Pai, no sentido da ação de graças e da alegria presente nas suas palavras que apontavam para o retorno de Cristo e naquilo que ele chamava de “a grande apresentação final”.


Se for preciso extrair um traço essencial na história desta vida feita de silêncio que encerra e carrega as confidências de seus correspondentes, será um que Evagro exprime em uma fórmula cujo segredo ele conhece: “Unido a todos e separado de todos”. Seguindo as pegadas dos grandes solitários do Egito e da região de Gaza, Barsanulfo resiste em receber visitantes, como o monge que insistia em vê-lo e que recebeu a resposta de Arsênio: “Se abro para você, abrirei a todos”. Alguns monges chegaram a colocar em dúvida sua existência, e acreditavam tratar-se de um subterfúgio de Seridos para afirmar sua autoridade. Então, magnanimamente, o Grande Ancião recebeu como exceção o irmão, junto com os que estavam com ele, e lavou-lhes os pés. O irmão Teodoro que era um dos céticos recebeu esta ablução e confessou sua própria incredulidade. A outro irmão que duvidava de sua existência, ele permitiu permanecer em uma cela vizinha à sua para ouvi-lo ditar uma carta ao abade Seridos. Visitando as Kellia, pudemos ver as longas ânforas com as extremidades quebradas que permitiam comunicar entre as celas sem ser visto. Isto permitia ao discípulo ou ao servidor de um solitário preveni-lo da visita de um hóspede.


Ao longo da Correspondência, o leitor descobrirá o lugar incomparável que ocupam o Grande Ancião e João o Profeta na vida do cenobium. Foi Barsanulfo, por exemplo, que consentiu na entrada de Dositeu no mosteiro, assim como já havia recebido Doroteu; foram os Padres de Gaza que confiaram a este último a obrigação de construir uma enfermaria e ocupar-se dela. O leitor poderá seguir com interesse como João de Beersheba, responsável por uma comunidade, engajou-se pouco a pouco na vida eremítica e como ele entrou para o pequeno círculo de amigos de Barsanulfo; ele descobrirá por dentro a vida desses monges e desses reclusos e encontrará nas cartas um espelho incomparável da vida e dos combates dos monges no século VI.


Raramente uma correspondência revelou tanto o coração humano nas suas questões e nos seus combates essenciais. No meio das trocas epistolares, muitos estados de alma transparecem, deixando aflorar o inconsciente, os fantasmas, os sonhos, as lutas com este príncipe pervertido que é o demônio, os discernimentos que devem ser realizados, a presença salvífica de Jesus, a misericórdia do Pai e a graça do Espírito Santo.


Com um dedilhado incomparável, marca de uma grande humanidade, Barsanulfo apaga-se por detrás da palavra de Deus, indicando firmemente o caminho a seguir. Jamais a lei o faz sobrepor-se ao Espírito, os princípios à pessoa que ele guia. Ele recebe um dom de vidência e de profecia, e chega até a perdoar à distância os pecados de seus consultantes como podemos ver pela correspondência endereçada a André, o Solitário.


Que sabemos nós do passado de Barsanulfo e de sua juventude? Suas cartas raramente evocam algumas poucas lembranças. Mas quase nada possuímos de dados precisos sobre sua família ou sua formação. O próprio Barsanulfo nos diz que esteve doente muitas vezes e que, mesmo gravemente enfermo, jamais deixou de lado o trabalho manual. Algumas vezes ele sequer suportava qualquer alimento e vomitava noite após noite. Depois, à custa de lutar, ele superou esta prova. Em sua juventude, confessou certa vez a Doroteu, ele foi tentado pelo demônio da luxúria.


A João de Beersheba ele confia: “Se eu lhe descrevesse as provas que suportei, eu lhe afirmo, seus ouvidos não suportariam, assim como quaisquer outros ouvidos de nossa época.” Suas confidências são de certa forma arrancadas de si mesmo, do silêncio que envolve sua vida; elas são partilhadas com seu correspondentes para ajudá-lo a suportar as provações que ele atravessa.


Como irá terminar esta vida consagrada ao silêncio e à oração, mas cuja irradiação expandiu-se até Constantinopla? Em resposta ao apelo ouvido e, fiel a esta ruptura essencial que paradoxalmente o colocara em relação com tantas vidas humanas, o Grande Ancião parece haver rompido finalmente com todos os laços exteriores para estabelecer-se numa reclusão definitiva. Assim é que depois das mortes do abade Seridos e de seu amigo João o Profeta, ninguém mais ouviu falar dele.


Não podemos aqui mais do que citar as próprias palavras de Barsanulfo dirigidas a um irmão que se afligia com a proximidade de sua morte: “Eu não os deixarei órfãos, disse ele... mas seja eu considerado digno de conduzi-los ao meu Deus, a ele que quer sempre a salvação de todos, e dizer-lhe: Eis-me aqui, eu e os pequeninos que me destes; guardai-os em teu nome; que tua direita os proteja. Conduzi-os até o porto de tua vontade e escreve seus nomes em teu livro... Pai, concede-me que aonde eu estiver, estejam também meus pequeninos, na vida inefável”.


Ao venerá-lo sobre seus altares, a própria Igreja confirma que são Barsanulfo, com a graça de Deus, está inscrito no Livro da Vida e que aqueles que lhe foram confiados o acompanham na vida inefável.



A VIDA DE SÃO JOÃO O PROFETA


João é o companheiro e o discípulo de são Barsanulfo. Aos olhos dos monges de Gaza, sua comunhão era tão grande que se Barsanulfo é chamado de “Grande Ancião”, toda a Correspondência chama João o Profeta de “o outro Ancião”[11]. Como Barsanulfo, ele viveu solitário e recluso, comunicando-se com seu mestre por correspondência. Sua doutrina situa-se na linha exata da de Barsanulfo.


Um monge, inquieto com a aproximação da morte do Grande Ancião, interrogou-o junto com outros irmãos a respeito de João o Profeta, recebendo esta resposta: “A respeito da minha de meu filho querido, humilde e obediente, que é um comigo e que renunciou completamente até a morte a todas as suas vontades, que posso dizer? O Senhor disse: Quem me viu, viu ao Pai; e ele disse do discípulo que também ele pode, ‘como seu mestre’. Quem tiver ouvidos que ouça!”


Quem interrogasse João o Profeta não deveria consultar Barsanulfo que respondia imediatamente ao consulente que ele se mantivesse dentro do que lhe dissera João e, reciprocamente, quem interrogasse João o Profeta, tendo já recebido uma resposta de Barsanulfo, seria despachado nos mesmos termos. Esta comunhão entre os dois anacoretas supõe que eles conheciam muito bem um ao outro e que o abade Seridos os mantinha a par das respostas de um e outro, pois o abade tomava nota e transmitia as cartas dos dois sábios de Gaza.


O título de profeta que lhe foi atribuído, explica a Vida de Dositeu, veio-lhe por seu carisma de discernimento. O carisma profético apareceu entre os primeiros monges do Egito. Santo Antônio o Grande descrevia eventos que aconteciam longe dele, e recebeu o dom de discernir os espíritos e expulsar os demônios. E quando santo Atanásio descreve a vida de santo Antônio, ele o compara a numerosos profetas, como Moisés, Samuel e sobretudo Elias e Eliseu. João de Lycóplis, monge de Tebaida, anunciara com antecedência ao imperador Teodósio o que ainda iria se passar no mundo. Na região de Gaza, dentre os discípulos do abade Silvano, Zenon era apelidado de profeta, Isaías de Sceta era chamado de terceiro Isaías o Profeta. João o Profeta situa-se em uma tradição na qual o dom da profecia relaciona-se com a vidência, ao discernimento e à clarividência espiritual.


Na Correspondência endereçada aos solitários, João o Profeta permanece a maior parte do tempo à sombra do Grande Ancião, ou responde a perguntas mais diretas, até mesmo as mais práticas referentes ao regime de vida dos eremitas, ou ainda, para saber a melhor hora para a vigília de seis horas.


Barsanulfo e João o Profeta são os testemunhos vivos de uma mesma tradição monástica. Barsanulfo muitas vezes cita suas fontes de maneira bastante livre: sua memória parece ter assimilado pessoalmente os textos aos quais ele se refere. João o Profeta, por sua vez, bebe das mesmas fontes. Nós o vemos muitas vezes citar literalmente suas fontes. Ademais, em suas respostas João o Profeta mantém-se primeiramente na vida comunitária e em sua organização. A autoridade de Barsanulfo é mais de ordem carismática, a de João o Profeta mais institucional, ao menos nas linhas gerais que alicerçam seu pensamento e sua correspondência.


Os dados biográficos referentes ao seu meio de origem, sua juventude e sua formação não nos são mais bem conhecidos do que aqueles que conhecemos da vida de Barsanulfo. Um relato inserido na Correspondência pouco nos diz dele: “O abade João habita na primeira cela que era de Barsanulfo, que fora construída para ele fora do convento. Ele aí levou por dezoito anos uma vida de hesiquiasta até sua morte.” Numa resposta que João endereça a um padre que pretende vir a retirar-se no mosteiro, ele nos revela não ser padre e ter já os cabelos brancos. O abade Seridos havia colocado um irmão a seu serviço e quando este caiu doente foi Doroteu que teve a honra de encarregar-se desta tarefa. Ele a exerceu por nove anos, durante toda sua permanência no cenobium de Seridos.


Dom Regnault sublinha a beleza do relato inserido sem dúvida pelo autor da coletânea das cartas que nos relata as três últimas semanas que decorreram entre as mortes do abade Seridos e de João o Profeta. Movido por piedade a Élien, o sucessor do abade Seridos, e, empurrado pelo Espírito Santo que nele habitava, João o Profeta passou duas semanas aconselhando o abade Élien a respeito de cada detalhe da direção do mosteiro: “...depois, continua o texto, tendo feito vir todos os irmãos e todos os que se encontravam no mosteiro, ele abraçou a cada um e despediu-se de todo mundo; depois disto ele entregou em paz sua alma a Deus.”


***


A identidade dos correspondentes será revelada ao longo da Correspondência segundo as três grandes seções que delimitamos, a saber, as resposta dadas aos solitários, aos cenobitas, aos bispos e aos leigos cristãos das redondezas. Na segunda seção, tratar-se-á de Doroteu de Gaza e de textos importantes referentes ao abade Seridos e de seu sucessor Élien.


Por enquanto, basta assinalar aqui que o abade Seridos foi o fundador e o responsável pelo cenobium que leva seu nome. Ele vivia na região de Thavatha provavelmente bem antes da chega da de Barsanulfo e João o Profeta. Calmo e confiante, ele teve uma grande alegria em poder acolhe-los junto ao seu mosteiro enquanto muitos abades da vizinhança havia se esforçado para tal. A presença dos dois Padres de Gaza deu ao cenobium do abade Seridos uma aura que passou a atrair aqueles que buscavam a Deus, coisa que a Correspondência testemunha profusamente.




A primeira carta da coletânea situa perfeitamente o papel do abade Seridos, o “verdadeiro filho amado” de Barsanulfo, como este gostava de chamá-lo. Ele era ao mesmo tempo o responsável pela comunidade, o escriba dos dois anciãos e quem servia de intermediário para levar as questões e as respostas a quem de direito. Ele se revela um homem cheio de bondade e sabedoria; quando ele era muito severo, Barsanulfo chamava sua atenção. Sabemos que ele ignorava o copta e que deveria assim ser de origem grega ou síria. Suas virtudes são celebradas na carta 570 junto com as de João o Profeta, que morreria três semanas depois dele.








































CAPÍTULO II


A COLETÂNEA DE CARTAS




1. INVENTÁRIO DAS CARTAS


Assim como na tradição apoftegmática as palavras dos monges do Egito foram transmitidas por grupos de textos pacientemente recolhidos e arrumados, podemos também dizer que a correspondência de Barsanulfo e João foi transmitida por pacotes de cartas reunidas no mais das vezes conforme os correspondentes a quem estavam endereçadas, para compor a coletânea que agora publicamos. A história complexa desta tradição manuscrita será estudada mais adiante; cada pacote de cartas tem por assim dizer sua própria história e portanto sua própria genealogia.


O inventário apresentado é o resultado deste estudo aprofundado segundo a escolha dos melhores manuscritos conservados. O conjunto da coletânea compreende três tipos de mensagens:


- simples bilhetes, geralmente curtos e compostos em grande parte por João o Profeta;

- cartas mais elaboradas, que respondem a muitas questões; e

- verdadeiras epístolas didáticas, geralmente redigidas por Barsanulfo.


Algumas questões, particularmente longas, foram escritas por solitários como o abade Paulo ou o abade Euthymo. Outros textos foram redigidos pelo monge que recolheu o conjunto das Questões e das Respostas; estes fornecem preciosas informações sobre o abade João, sobre Barsanulfo e sobre o abade Seridos, ou ainda resumem uma situação, como acontece na carta 224.

O conjunto de cartas está organizado da seguinte maneira:


1 a 54: correspondência com João de Beersheba; a carta 3 é de João, as demais de Barsanulfo;

55: resposta de Barsanulfo a Abrahão, monge egípcio que escreveu em copta;

56 a58: correspondência entre Barsanulfo e Paulo o Solitário;

59 a 71: cartas ao abade Euthymo;

72 a 123: a André, ancião enfermo;

124 a 131: ao monge Teodoro;

132 a 137: ao irmão que o interrogava por enigmas;

137b: meditação sobre a letra êta escrita por Barsanaulfo;

138 a 160: cartas a dois padres;

161 a 210: a um irmão e a dois padres;

211 a 213: a um padre sacerdote;

214 a 219: a um irmão doente;

220 a 223: a um irmão moribundo e a seus irmãos;

224 a 244: a irmãos;

245 a 251: a dois monges;

252 a 338: correspondência entre os dois anciãos e Doroteu, o futuro abade autor das Didascalias;

339 a 347b: cartas a diversos monges;

348: ao irmão de Barsanulfo;

349 a 389: a diversos irmãos;

390: aos monges de um mosteiro;

391 a 398: a outro irmão;

399 a 491: a leigos e a irmãos;

492 a 502: a um irmão, antigo soldado;

503 a 533: a dois irmãos e a um irmão enfermo;

534 a 570: a diversos irmãos e padres do mosteiro;

570b: notas do monge sobre o abade João;

570c: notas do monge sobre o abade Seridos;

571 a 598: correspondência entre Elién (sucessor de Seridos) e João, e respostas de Barsanulfo (cartas 572 e 573);

599: carta de João a anciãos do mosteiro;

599b: notas do monge sobre a morte do abade João;

600 a 607: correspondência com um irmão sobre origenismo; as cartas 601 e 602 são de João, as demais de Barsanulfo;

608 a 787: a diversos leigos, professores e a um advogado;

788 a 844: a alguns bispos e aos habitantes de Gaza;

845 a 850: a leigos e a um irmão.


Como já assinalamos, o estudo desta coletânea distingue três grandes seções, contemplando:


- a correspondência aos solitários (cartas 1 a 223);

- a correspondência aos cenobitas (cartas 224 a 616); e

- a correspondência aos bispos e aos leigos cristãos (cartas 617 a 850).





2. O GÊNERO LITERÁRIO


Depois de percorrer algumas páginas, o leitor ficará intrigado com a originalidade desta obra: não se trata de uma “Correspondência” destinada à publicação, nem de um tratado de vida espiritual, mas de um “documento de época” que descreve, por meio de perguntas e respostas, a vida cotidiana em um mosteiro, situado na região de Gaza, na época do imperador Justiniano (século V).


Os interlocutores são concretos, anacoretas que viviam nas cercanias do mosteiro, membros da comunidade, padres, leigos e até bispos da região. Os assuntos tratados são bastante variados: eles vão desde as dificuldades reais, físicas ou espirituais, encontradas pelos monges em sua ascese monástica, aos conselhos e encorajamentos, às sugestões para a nomeação de novos bispos, até as questões teológicas do momento.


Um outro aspecto salta aos olhos: a espontaneidade com que os temas mais diversos são abordados: a linguagem direta, viva, incisiva e simples pretende derrubar, mover, persuadir e até acalmar o interlocutor.


É por isso que, se a correspondência dos dois Anciãos não constitui uma verdadeira obra literária, não podemos subestimar o interesse histórico e espiritual que ela apresenta para o estudo do cristianismo dos primeiros séculos.


A primeira carta de Barsanulfo a João de Beersheba comenta o gênero literário da Correspondência dos Padres de Gaza. Com efeito, como conta Seridos, Barsanulfo disse: “Vá, escreva sem medo; mesmo que eu lhe ditasse milhares de palavras, o Espírito de Deus não permitiria que você escrevesse sequer uma letra de mais ou de menos, mesmo que fosse involuntariamente; mas ele guiará sua mão para que você escreva em ordem.”


A correspondência de Barsanulfo, como costumava ocorrer na antigüidade, era ditada por ele ao abade Seridos que anotava com cuidado o que lhe era dito. De entrada, o gênero literário da Correspondência adota a linguagem familiar do discurso direto. O texto escrito guarda o traço deste lado espontâneo da correspondência. As frases são curtas, simples, muitas vezes justapostas. Encontramos também aí a linguagem falada no próprio tom da escrita. Quando se dirige a João de Beersheba, Barsanulfo começa suas cartas com estas palavras ditadas a Seridos: “Diga ao irmão João”, ao lado da expressão: “Escreva ao irmão João”. No conjunto da correspondência aos solitários, a expressão “dizer” é mais comum do que “escrever”. Na mentalidade dos consultantes e dos dois Anciãos, a linguagem falada parece predominar.


Tomemos a carta 55, por exemplo. Barsanulfo retoma as questões de seu correspondente egípcio e responde como se ele estivesse presente: “Você me disse em sua carta: ‘Se for possível, torne-me digno da sua doçura...’ E você me disse também em sua carta: ‘Meu pecado me separou de você, meu Mestre.’ Quanto ao que você me escreveu no fim da carta (...) também eu lhe digo a mesma coisa.” O texto usa a linguagem falada e a própria correspondência multiplica as expressões “você me falou”, “você me disse”, “você me escreveu”. Esta linguagem familiar e direta é habitual no mestre de Gaza. Ele multiplica as questões, as questões sobre si, a maneira de discernir os pensamentos, os engajamentos, através de uma série de imperativos.


O modo de pensamento apóia-se sobre as Escrituras, como já explicamos, que fornecem os princípios do agir cristão para o eremita que consulta os Padres. A esse estilo direto junta-se a oração e a esperança, de uma maneira mais exortativa, como “quem tiver ouvidos que escute...”, ou ainda “esta é minha prece a Deus, que vocês guardem isto e que possamos nos ver no reino de meu Deus...”.


Algumas epístolas de um gênero especialmente original merecem a atenção do leitor. Trata-se das cartas 132 a 137 e 137b. As seis primeiras são endereçadas a Barsanulfo por um irmão que se exprimia por enigmas recorrendo às letras do alfabeto. O Grande Ancião respondeu-lhe também por enigmas utilizando sentenças e, na carta 137b, ele redigiu uma longa meditação sobre a letra êta do alfabeto. Aqui Barsanulfo demonstra um grande talento literário: concebida como uma oração, a meditação contém figuras retóricas, reforços sucessivos, uma progressão ascendente que vai do concreto ao abstrato, simetrias e “refrões” quase poéticos. Este gênero literário, no qual se usa o recurso da forma alfabética, já era conhecido em todas as épocas da Antigüidade, mas as meditações eram raras originalmente. No monaquismo, estes “exercícios” tornaram-se mais comuns e fizeram parte das práticas místicas dos monges.




3. O ESTILO E A LÍNGUA



O estilo – O estilo e o tom das Cartas refletem o caráter de seu autor e variam conforme os assuntos tratados e as pessoas a quem são dirigidas as respostas; é preciso distinguir as cartas escritas por Barsanulfo daquelas de seu companheiro João o Profeta.


Cartas de Barsanulfo – Quando o Grande Ancião se dirige a monges, vindos ao mosteiro de Seridos para se iniciar na vida ascética ou lhe pedir conselhos para melhor exercer suas funções sacerdotais, seu estilo é enfático e caloroso, até poético, principalmente nas cartas em que ele se utiliza de comparações[12]; o tom da carta, decidido e vigoroso, reflete uma personalidade forte e possui um caráter de grande franqueza. Nas cartas em que Barsanulfo desenvolve suas idéias sobre a vida espiritual ou sobre a ascese monástica[13], ou ainda quando ele aborda assuntos mais amplos, como a “meditação sobre a letra êta[14]” ou as controvérsias teológicas de seu tempo, ele demonstra uma grande capacidade de expor idéias e de refutar teorias heréticas. Os argumentos são abordados com sutileza, com interrogações oratórias, definições e repetições; os períodos são mais longos e complexos, as formas gramaticais mais clássicas. Às vezes ele recorre a um tom mais duro, a termos mais violentos, mais diretos e até mesmo crus[15]. Para traduzir uma viva emoção ou seu ressentimento, ele exprime sua indignação ou sua estupefação com numerosas interrogações e expressões apaixonadas[16].


Em outras cartas, o tom se torna mais oficial, quase solene, mas ainda enérgico, traduzindo-se em expressões convencionais e formais[17].  Quando são simples irmãos que se dirigem ao Grande Ancião, ele responde com bilhetes curtos cheios de simplicidade e doçura. Ele recorre desde metáforas à linguagem falada, o tom se torna familiar, exortativo e até afetuoso[18].


Enfim, na carta 569, que evoca a peste do ano 542-543, é com um tom profético e quase bíblico que Barsanulfo responde aos monges do mosteiro, que lhe suplicam que implore pela bondade divina.


Como procede o Grande Recluso em suas respostas?


Uma vez que ele introduz o assunto retomando a questão de seu interlocutor, ele desenvolve a resposta com ordem (mas não uma ordem pré-estabelecida) e com clareza; ele aprecia as digressões baseadas na Bíblia e os textos patrísticos.


Concluindo, se o estilo varia segundo o interlocutor, se o tom passa do afeto à exortação, à exaltação e até à indignação, seu autor permanece sempre humilde (gè kai spodos eimi, “eu sou terra e cinzas”; egô elachistos, “eu, o menor”; etc.), consciente de sua condição frágil (adelphe, euxai hyper emou, “irmão, reze por mim”) e pronto a encorajar todos os que se dirigiam a ele.



Cartas de João o Profeta – Elas não diferem muito das de Barsanulfo, ainda que o estilo seja mais clássico. O tom é menos direto, menos familiar e menos variado. Também o estilo se apresenta mais uniforme e convencional, menos enfático. João consegue melhor refrear suas emoções e sua espontaneidade; ele não quer revelar muito de seu caráter.


Em geral o Outro Ancião responde de modo lacônico: suas mensagens, concisas e curtas, referem-se ao regulamento e aos problemas cotidianos do mosteiro de Seridos (horas das orações, vigílias, repouso, modo de orar, de se vestir, de se ocupar em sua cela, etc., inclusive as relações dos monges com o exterior). Em seus conselhos, como o outro Grande Ancião, ele recorre às citações bíblicas e às sentenças dos Padres. Ele emprega imagens expressivas que testemunham uma grande habilidade dialética, um espírito conciso e didático[19].



A língua – A língua dos dois Grandes Anciãos é a linguagem corrente do  século VI, em que se misturam formas clássicas tradicionais e expressões comuns de época.


Aqui impõe-se uma observação preliminar: é difícil definir com exatidão a língua dos nossos autores devido às variações do texto que são muitas vezes discordantes. Muito provavelmente, alguns copistas corrigiram formas verbais não clássicas ou palavras raras que não compreendiam. Para esta edição foi escolhido o manuscrito (Coislin 124) que apresenta formas mais arcaicas e modos de expressão menos clássicos, que lembram que nossos dois Anciãos não eram gregos de origem, que eles tiveram que aprender a língua e que assim eles transpunham às vezes para o grego semitismos ou expressões próprias à sua língua materna.


As diferenças em relação ao grego clássico podem ser observadas principalmente na normalização dos comparativos, superlativos, pronomes e formas verbais; casos, modos e tempos foram invertidos e a sintaxe dos períodos é bem menos complexa. Entretanto, numerosos traços clássicos infiltram-se em meio ao grego popular das “Cartas”, como o emprego clássico do aumento, do desdobramento, do particípio perfeito passivo e de algumas preposições e conjunções.


Segundo H.I. Marrou[20], o cristianismo desenvolveu-se no seio da comunidade greco-romana e no século VI a cultura dos cristãos regos, palestinos e mesmo egípcios absorvera completamente os elementos clássicos. A educação bizantina, no oriente grego e em especial em Antioquia na Síria, prolonga sem interrupção a formação clássica.


O estudo semântico da Correspondência revela-se cheio de interesse: ele expõe a evolução que se produziu na língua grega. A chegada do cristianismo e do monaquismo trouxe consigo a criação de novas palavras e a especialização de termos antigos.


A língua vulgar sempre foi sensível às influências estrangeiras e, no grego do século VI de nossa era, aparecem palavras emprestadas mas “helenizadas”; por seu turno, o latim desempenhou um papel importante nos termos técnicos que se referem ao direito romano, à administração imperial, bem como à guerra e às medidas. O ascendente semítico, em especial na Septuaginta, não havia ainda desaparecido na época bizantina, quando os autores citam freqüentemente os versículos da Escritura. Em alguns lugares os nomes das festas judaicas subsistem e os termos hebraicos são geralmente transcritos em grego. Enfim, o egípcio e o persa também introduziram algumas palavras no grego tardio. O vocabulário dos dois Grandes Reclusos é tão rico e variado que poderia constituir em si mesmo um objeto de estudo: na Correspondência convivem palavras antigas, neologismos e termos raros.


Convém igualmente nos determos por um instante sobre as citações bíblicas e patrísticas confrontando-as com os textos originais, sabendo que esta é uma tarefa difícil porque os manuscritos existentes apresentam muitas variantes quanto às citações. Algumas vezes os copistas transcrevem as passagens de cor ou então as corrigem por sua própria conta.


Os dois Grandes Anciãos, que exortam seus correspondentes a viver como Cristo, utilizam a santa Escritura com base didática para seu ensinamento de perfeição, humildade e obediência. Do Antigo Testamento eles citam principalmente os Salmos e, do Novo, o evangelho segundo Mateus. Nas Cartas, a importância dos Padres do Deserto não é menor do que a da Bíblia. As lições dos primeiros Padres estão constantemente no pensamento dos dois autores.


Nas respostas de Barsanulfo, as citações emprestadas ao Novo Testamento são mais numerosas, enquanto que nas cartas de João o Profeta há um equilíbrio entre os dois textos escriturários. Na maior parte das vezes, Barsanulfo, recluso em sua cela, confia principalmente em sua memória e na tradição oral. Ele introduz as citações no seu discurso modificando parcialmente o texto original e utilizando a linguagem falada em seu tempo. Estas divergências se devem também, talvez, ao fato dele ditar suas cartas ao abade Seridos. João o Profeta reproduz com mais fidelidade os textos das Santas Escrituras, mas as diferenças entre suas citações e os textos originais também não faltam. As numerosas citações bíblicas e patrísticas indicam que Barsanulfo e João estavam profundamente ligados à leitura das Vidas e das Sentenças dos Padres do Deserto e em particular aos Logoi de Isaías de Sceta.






































CAPÍTULO III


O CONTEÚDO DAS CARTAS 1 - 223




1. OS CORRESPONDENTES


João de Beersheba, higoumeno chamado à solidão (Cartas 1-54) – João de Beersheba, higoumeno de uma comunidade monástica próxima de Gaza, sentiu-se chamado à vida solitária e abriu-se com Barsanulfo. É o início de uma longa correspondência em que aparece o humilde ministério do abade Seridos, ao mesmo tempo abade e escriba de Barsanulfo (1)*. João o Profeta, o outro sábio de Gaza, foi pouco consultado por ele (3). João de Beersheba é chamado de irmão, irmão João, “aquele que foi chamado por um sinal celeste e divino a habitar perto de nós” (7), o bem-amado irmão João, aquele que faz um só espírito conosco (13), a quem “eu escrevo como à minha alma” (16). Freqüentemente as cartas mencionam o papel do abade Seridos, qualificado de criança (9), de “meu filho querido” (10), de criança bem-amada (24).


Três etapas escalonam o itinerário de João de Beersheba. No início da correspondência, Barsanulfo envia seu capuz ao discípulo. Ele o convida a deixar tudo para seguir a Cristo, e a deixar o Espírito Santo terminar o que começara nele (1). Ele lhe ensina também quais disposições interiores antecedem a quietude perfeita (2-20).


Na segunda parte, é João de Beersheba que se propõe a fixar regras de vida (21, 23, 28) e as submete a seu mestre espiritual. Apenas uma resposta: não fixe para si nenhuma regra absoluta, mas avance nos preceitos a que se propuser. “Se você tiver que sair, eu estarei com você para protegê-lo”, declara Barsanulfo.


A terceira seção de cartas (36 a 54) situa-se num clima de obediência: João de Beersheba pode começar sua vida solitária. Daqui para frente, o silêncio lhe será mais proveitoso e estimado do que a palavra. Barsanulfo reprova-lhe a falta de coerência (37). Incansavelmente, o Grande Ancião lembra a presença de Deus (46 a 54) e a necessidade de João de Beersheba ruminar as palavras que ele lhe envia (48, 49, 53). Deixar todas as preocupações do mundo, seguir livremente as regras dadas, colocar a Deus no centro de sua vida escalam este itinerário para a solidão. A busca de Deus é vivida na confiança e na ação de graças, habitada pela presença contínua do Pastor (45) e do Espírito Santo. Barsanulfo e o pequeno círculo de eremitas que o cercam sustentam e acolhem em sua comunhão quem se une a eles no silêncio do deserto. As cartas trocadas com João de Beersheba testemunham um evolução progressiva da vida comum à vida solitária.


Abrahão, solitário egípcio (Carta 55) – Abrahão, chamado de servidor de Deus, escreve uma carta em copta a Barsanulfo, ele próprio egípcio de origem. Ele solicita uma entrevista que não irá obter, ao contrário do monge Teodoro (125). Barsanulfo o assegura de sua prece: “Orai uns pelos outros para serem curados”, e lembra-o de que somos todos estrangeiros sobre a terra e que é preciso “morrer para os homens”. Por respeito ao abade Seridos que não conhecia o copta, ele responde em grego.


Paulo, o solitário presunçoso (Cartas 56 a 58) – Três cartas de Barsanulfo se dirigem ao irmão Paulo, muito doente e que, ainda por cima, quer tomar como servidos um irmão também doente (56). Presunçoso, Paulo mostra-o também em suas discussões sobre a fé das quais ele sai profundamente aflito. Barsanulfo partilha deste sofrimento, em profunda comunhão com o abade Paulo, pronto a dar sua vida por ele (57). Ele lhe dirige, no entanto, uma demonstração firme, mas cheia de respeito. Na última carta que possuímos, Barsanulfo o faz entender que ele é incapaz de perscrutar as coisas da fé. Que Paulo se mantenha no caminho real, ou seja na fé dos trezentos e dezoito Padres na qual ele foi batizado, e Barsanulfo responderá por ele “no dia em que Deus julgar as ações ocultas dos homens” (58).


Euthymo, o homem da prece (Cartas 59 a 71) – Euthymo é um homem da oração. As questões que ele coloca provêm deste aspecto de sua pessoa (71). Barsanulfo o considera como um irmão, “irmão Euthymo” (67); é um verdadeiro amigo (70) a quem ele envia seu escapulário (71). Mas ele não utiliza termos calorosos, tendo em vista sem dúvida a idade e a personalidade de Euthymo. Após sua morte, Barsanulfo o apresentará como modelo a um solitário (144).


As dimensões da correspondência se desenvolvem num nível de fé exigente: “A fé perfeita se revela na cura” (59). A perspectiva da Ressurreição e do Juízo é recorrente. A correspondência parece seguir um itinerário que vai dos pensamentos impuros e das questões relativas à Ressurreição à descoberta do amor de Cristo através de sua cruz (61). Ele é o verdadeiro incorruptível (62), o Pastor das ovelhas perdidas (67). O combate é incessante, concernente ao regime alimentar (63 a 65), à humildade e ao orgulho (66), à busca do Pastor (67), às questões decisivas sobre o pecador e a misericórdia divina (68, 69), à dúvida (70), à dor e às lágrimas (71). Euthymo é excelente na interpretação alegórica das Escrituras; o Grande Ancião vai ainda mais longe neste sentido.


André, o solitário enfermo e escrupuloso (Cartas 72 a 123) – Estas cartas nos permitem seguir a evolução de André. Sujeito a constantes ataques de febre, reumatismo e queimação estomacal noturna, ele teve, em certos momentos, curtos períodos de remissão. As duas últimas cartas são endereçadas ao discípulo de André que cuidou dele nos últimos momentos de sua vida. Ele é qualificado de “irmão atormentador” (122-123), “meu irmão, meu associado” (73), “meu bem-amado” (78), “irmão André e bem-amado em Cristo” (91), “irmão querido” (92), “irmão querido que é um comigo” (93), “irmão e bem-amado de minha alma” (113), “servidor do Deus Altíssimo”, “co-servidor de minha baixeza”; estas expressões testemunham a crescente comunhão entre Barsanulfo e André (91-93).


Barsanulfo lhe enviará água do cantil do bem-aventurado Euthymo e um pouco de sua comida para que seja abençoada para André. João o Profeta desempenha um papel discreto, intervindo unicamente para afastar as hesitações de André. Mas ele está a par das mensagens que Barsanulfo envia a André e as confirma quando necessário. O discípulo tem um temperamento ansioso, entristecendo-se com o que é feito pela metade, sempre interiormente inquieto, cândido, quase ingênuo no dizer do próprio Grande Ancião, sensível, depressa afetado pelo irmão que o serve com grande desenvoltura.


A doença ocupa um grande espaço nas trocas epistolares, suscitando fases de desencorajamento, depressão e até melancolia. A evolução interior de André é a medida de seu temperamento. Ele chega a tal grau de conversão que Barsanulfo lhe perdoa todas as faltas cometidas desde seu nascimento (115) e afirma que o representará pessoalmente perante o Senhor no juízo final (117).


Três temas emergem desta longa correspondência: a doença, desenvolvida sobretudo na primeira parte (72 a 85); a perseverança necessária durante a enfermidade, os combates espirituais consigo mesmo, as dificuldades encontradas com o irmão que o serve, na segunda (86 a 108); já presente na ascese e mais explícita na carta 103, o lugar preponderante do Senhor Jesus e a prece dominam a última parte da correspondência (109 a 123). De seu lado, João o Profeta lembra alguns textos da Bíblia sobre a persistência (76) e sustenta as palavras do Grande Ancião (89, 94 ss.).


O monge Teodoro (Cartas 124 a 131) – Sob os epítetos de “minha criança”, “criança”, “irmão”, Teodoro aparece como um anacoreta que coloca as questões fundamentais da existência, não sem certa presunção. Barsanulfo expõe bem esta separação entre as idéias e as práticas de seu correspondente. Sua interrogações beiram o ceticismo, a ponto de duvidar da existência do Grande Ancião. Teodoro aflige-se também com o fato de ter deixado sua esposa e seus filhos.


As questões distinguem três modos de pensamento: o que vem de Deus, o que é natural e o que vem dos demônios (124); elas referem-se à prece (126) e ao poder concedido ao diabo (127). Teodoro pergunta-se sobre a própria existência de Barsanulfo e obtém a permissão para vê-lo (125), coisa que Abrahão o Egípcio não conseguira (55). Ele inquieta-se por sua esposa e filhos, a quem deixou (128); ele se espanta com a cura de seus olhos doentes (126) e tem medo à noite (131).


A aflição de Teodoro é grande por ter deixado sua esposa e filhos. João responde primeiro (128, 129), Barsanulfo acrescenta (130); João responde às perguntas relativas aos temores noturnos (131); Barsanulfo educa e forma Teodoro sobre as questões da fé (124 a 127).


O irmão que perguntava por enigmas (Cartas 132 a 137) – Iota é a solidão, kappa é o regime alimentar, lambda são as relações! Este irmão havia encontrado seu código para se comunicar com Barsanulfo de maneira a que o abade Seridos não compreendesse suas mensagens (132). Na seqüência, ele não utiliza mais os signos, contentando-se com pensar neles. As respostas de Barsanulfo são lacônicas, não se afastando para a direita nem para a esquerda (132), escolhendo o que é proveitoso (133), unindo corpo e alma (134, 135). Finalmente, uma longa missiva de Barsanulfo convida-o a não mais se expressar por enigmas, a retomar com o que é humilde, a escrever ou colocar suas questões por intermédio de Seridos, a viver na misericórdia divina (136). O irmão adere generosamente a esta maneira de ver (137).


Meditação a partir da letra êta (Carta 137b) – Ela é a expressão de algumas opiniões e ensinamentos de Barsanulfo ao irmão que o consultava por enigmas, bem como a outros monges que viviam na solidão. O compilador manteve esta meditação como representativa da interpretação das letras do alfabeto pelo Santo Ancião.


Êta evoca por inteiro o guia que leva à luz, o Senhor Jesus que está à direita do Pai e nos liberta de todas as paixões. Ele é a Vítima oferecida pela vida do mundo; ele é a alegria do Pai; ele é “Emanuel, Deus conosco”.


Um solitário chamado a morrer para si mesmo (Carta 138) – Cheio de zelo, este eremita anônimo quer ensinar a sabedoria ao seu servidor. Ele enfrenta os pensamentos que o fustigam e se interroga sobre as relações que deixou atrás de si. Fiel à tradição que o leva, o Grande Ancião lembra ao recluso que ele deve lutar para morrer para si mesmo e conhecer apenas Jesus. Que ele desperte de seu sono de chumbo para estar preparado quando o Senhor chegar.


Um solitário aprendendo a morrer para si mesmo (Cartas 139 a 160) – Os dois de Gaza respondem a um monge denominado apenas “irmão”, “meu irmão” ou “caríssimo irmão”. O solitário podia se beneficiar das orações de um Ancião perto do qual ele vivia (149); ele próprio tinha um servidor que lhe fazia suas receitas alimentares. Seu regime, legumes verdes, nem sempre era bem preparado (151). Barsanulfo lhe dá como exemplo o abade Euthymo, “companheiro de rota que tomou a dianteira”, saudando sua perseverança nas provas. Euthymo foi-se gloriosamente para o Senhor (144). Barsanulfo envia um pão como bênção a seu correspondente para sustentá-lo (141).


Dois temas principais são tratados separadamente pelos dois anciãos. Muitas facetas do cotidiano da vida eremítica vêm deste modo à luz. A prece abre a troca de cartas. Trata-se da intercessão (139), do Pai Nosso e da oração de Macário de Sceta (140), da impassibilidade (141), da duração da prece (143), da humildade e da prece perfeita (150). O consulente pergunta a João o Profeta como obter pela oração a perseverança perfeita (145).


Um outro assunto mistura-se ao da oração: o combate espiritual. As questões se sucedem: como passar da acídia à perseverança e como obter a perfeita perseverança (144, 145)? Quanto tempo velar e com que vestimentas contentar-se (146, 147) Como suportar as doenças com alegria e como chorar seus pecados (148)?  Como escapar de sua mediocridade e preguiça (149)? Uma questão fundamental emerge: o que significa morrer para si (151, 153)? Para o solitário, ela se aplica sobretudo à alimentação (152, 154, 156, 157, 159) e à temperança (154, 155, 158, 160).


João o Profeta dá como exemplo um homem que, um ou dois dias da semana, abstém-se de comida (152); por sua vez, Barsanulfo cita um monge capaz de permanecer “sem comida, bebida ou vestes até a visita do Senhor, pois sua comida, sua bebida e suas vestes são o Espírito Santo” (149).


Um irmão do cenobium, obcecado pela comida (Cartas 161 a 165) – As três primeiras cartas referem-se à comida. João distingue o fato de escolher alimentos doces, salgados ou ácidos conforme convenham melhor às necessidades do organismo. Que ele não os escolha apenas por glutonaria, sabendo que estes alimentos tornam o corpo pesado (161). Se a tentação se afasta, o irmão pode comer enquanto se recrimina. Se ela persiste, que ele invoque o Nome de Deus e se abstenha de comer (162). O respeito para com o outro também é importante (163). Em geral, é preciso evitar a negligência, fonte da cobiça carnal (164), interrogar os pensamentos que atacam o homem, rezar e salmodiar com os lábios, transportar o que foi visto e ouvido para a humilde prece acompanhada de lágrimas (165).


Um solitário perturbado pela comida, os sonhos e os fantasmas (Cartas 166-171) – João o Profeta não tem igual para responder com lucidez e concisão, apoiando-se sobre fórmulas emprestadas aos Padres do Egito. O melhor a fazer nas tentações é colocar sua impotência diante de Deus (166, 167). Os demônios, com efeito, têm a arte de se metamorfosear para semear a dúvida e a confusão. Mas a prece e a genuflexão repetidas são um poderoso auxílio (168). Quanto ao discernimento dos movimentos naturais, ele aparece na ausência da vontade de enlevo, de prazer ou de inveja vinda do diabo. Mas os eunucos do reino ultrapassaram este estágio e não sentem mais nada fisicamente (169). A santa comunhão nos é dada como a pessoas feridas que necessitam de médico (170). É bom confessarmos nossos fantasmas a um ancião e pedir-lhe sua intercessão; é a fonte da cura (171).


Um irmão inquieto com a morte próxima de Barsanulfo, e seus companheiros (Cartas 172 a 210) – Um primeiro grupo de cartas endereçadas a João o Profeta (172 a 182) constitui uma série de bilhetes nos quais o Ancião responde a questões precisas sobre como se manter na cela (172), sobre a vontade (173, 191), a oração (175 a 178) e o combate espiritual (174 a 181). A moral do solitário que havia sido agredido por arruaceiros é retomada por João (182, 184) e por Barsanulfo (182). O solitário sente desejo de retornar ao mundo (185).


A segunda parte da correspondência possui acentos muito pessoais e reflete o próprio coração das idéias de Barsanulfo e de seu ser. Os assuntos abordados referem-se à aflição do irmão (186) e ao receio da morte próxima de Barsanulfo (187); a oração ocupa uma parte considerável (188, 194 a 196, 199, 207, 209), junto com a saúde de Seridos (189), os pensamentos (193, 200 a 202, 204, 205), a mortificação (198), o progresso espiritual (203), o encontro com os irmãos (206), a solidão total (207, 208). Na última carta (210), o eremita pede a Barsanulfo que abençoe seu capuz e seu escapulário.


O pensamento caloroso do Grande Ancião se mostra em suas invocações: caríssimo irmão, irmão bem-amado, irmão bem-amado no Senhor, mas também irmão indolente (191), irmão letárgico (200). João o Profeta é chamado por Barsanulfo de “meu companheiro” (186) e Seridos, como de costume, “criança bendita, humilde e obediente” (188), “meu filho”.


Barsanulfo dirige-se também aos companheiros do hesiquiasta a que ele chama de irmãos, filhos, filhinhos, crianças queridas de Deus (188, 192, 195). Sabemos que o eremita preparava fermento horas a fio para fazer pães (193). Barsanulfo quer fazer dele um soldado de uma tropa de elite (196) mas ele quer sobretudo conduzir os seus até o instante do juízo final (187), e desde logo, pelo Espírito Santo, conduzir seu discípulo a Jesus, médico das almas e dos corpos (199). Esta qualidade de presença forte na intercessão do Espírito Santo aflora sempre: “E eu (...) por causa do amor, queimando como um fogo ardente de Cristo em mim (...) não cesso de rezar a Deus dia e noite para preenchê-los com ele, para que habite em vocês e aí esteja sempre, para que lhes envie o Espírito Santo” (186).


Um sacerdote ativo faz o aprendizado da solidão (cartas 211 a 213) – João o Profeta, já com cabelos brancos, poderá aconselhar este padre mais velho do que ele? Que ele permaneça cinco dias na solidão e dois dias para encontrar os outros (211). Se ele desejar comungar todo dia, que alguém lhe leve a santa comunhão, pois o maior dos médicos transporta-se sozinho para perto daqueles que estão esgotados e passam mal... (212). Quanto a querer interceder por uma viúva que passa dificuldades, a resposta de João é sem ambigüidade (213).


Um irmão a serviço de um ancião enfermo (Cartas 214 a 219) – A este irmão Barsanulfo ensina a suportar tudo com submissão. Quanto ao resto, por tratar-se de assunto mais grave, que ele se remeta a seu abade (214). Que ele coloque sua impotência nas mãos de Deus e não tente compreender aquilo que o ultrapassa (215). Até o último suspiro, o monge deve permanecer vigilante (216). Que o irmão adquira a humildade, a obediência e a submissão voluntária (217). Ao irmão gravemente enfermo, Barsanulfo perdoa todos os pecados, e exorta-o à perseverança até o fim (218). O mesmo irmão implora a Barsanulfo, com emoção, que este lhe permita partir para Deus. A resposta de Barsanulfo é uma admirável oração à Trindade à qual ele apresenta o irmão moribundo (219).


Um irmão (Dositeu) acometido de tísica grave e a ponto de morrer (Cartas 220 a 223) – É comovente comparar estas cartas com o que sabemos de Dositeu, por meio de seu mestre de noviços, Doroteu, e, sobretudo, por esta jóia da literatura patrística que é a Vida de Dositeu. Barsanulfo perdoa-lhe os pecados e o convida a regozijar-se e a tremer de alegria no meio de suas penas que terão fim (220). Temendo que Dositeu morra, como confirma João o Profeta (221), os irmãos suplicam ao Grande Ancião que o conserve em vida; este responde que ele recebeu a vida eterna, mas que os irmãos guardem segredo, pois Dositeu vai passar da morte para a vida eterna e da aflição ao repouso. Que também os irmãos se alegrem no Senhor (222)! Quanto mais Dositeu é atacado pelo mal, mais os irmãos suplicam a Barsanulfo que o autorize a entrar na misericórdia divina. Dositeu morreu em paz após longos sofrimentos (223).


2. LEITURA E INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS EM GAZA


Cada missiva de Barsanulfo se apresenta como um comentário dos textos escriturários adaptado ás questões levantadas por quem o consulta e destinado a alimentar o coração e a vida deste. Muitas pesquisas poderiam ser feitas a respeito da escolha das citações, sua interpretação e as fontes que inspiraram os sábios de Gaza.


Dois pontos chamam nossa atenção: a leitura das santas Escrituras tal como a descobrimos ao longo das cartas endereçadas aos solitários e a interpretação exegética que delas nos fornece Barsanulfo.



LEITURA DAS SANTAS ESCRITURAS EM GAZA


A correspondência dirigida aos solitários descreve o modo como o asceta deve praticar a salmódia, ruminar a Palavra de Deus e fazer seu exame de consciência. As alusões à santa liturgia são mais raras. Cada um desses aspectos da vida cotidiana dos solitários aparece na correspondência.



A jornada do solitário – As santas Escrituras fazem parte integrante da vida do solitário. O ritmo de sua jornada inscreve-se na linha reta que conhecemos da tradição dos Scetiotas no Egito. A André enfermo, que pergunta como passar o dia, Barsanulfo lembra: “Nossos Pais que eram perfeitos não tinham uma regra precisa; pois a cada jornada, sua regra era de salmodiar um pouco, recitar um pouco de cor, examinar um pouco seus pensamentos, ocupar-se um pouco da comida, e tudo isto no temor de Deus, pois foi dito: “Tudo o que fizerdes, fazei-o pela glória de Deus” (23, 85).


A salmódia, a recitação dos demais livros da Bíblia, o exame dos pensamentos e a preparação das refeições, tais eram os momentos marcantes da vida solitária em Gaza.



A salmódia – A salmódia, lida ou recitada de cor, acompanha o trabalho manual. Ela é feita enquanto e permanece sentado, dizendo ao final de cada salmo a oração: “Que Deus tenha piedade de mim, miserável”. Se o monge é fustigado por pensamentos, diz João o Profeta, que ele acrescente: “Ó Deus, veja minha aflição, venha em meu auxílio”. João o Profeta especifica para o eremita em questão: “Quando você terminar três fiadas de malhas de sua rede levante-se para a oração. Depois, colocando-se de joelhos e levantando-se de novo, recite a prece mencionada” (143). O Pai Nosso era recitado uma vez depois dos Salmos, assim como as orações por intercessão (175, 176).


O ritmo da salmódia durante o trabalho era deixado à discrição de cada um. A João de Beersheba, antigo superior que entrou para a solidão e pedia uma regra a seguir para a salmódia, o jejum e a oração, Barsanulfo responde: “Deixe de lado as regras dos homens e escute o que Cristo lhe diz: ‘Aquele que perseverar até o fim será salvo’. Não peça um mandamento, porque eu não quero que você esteja sob a lei, mas sob a graça” (23). O mesmo [é dito a André: “Quanto à salmódia e à recitação de cor, não se restrinja, mas faça conforme a força que o Senhor lhe der” (85).


Segundo a tradição de Sceta, os solitários recitavam durante as vésperas e nas vigílias noturnas. Interrogado a respeito por um eremita, João o Profeta confirma que cabe recitar doze Salmos nas vésperas e, ao final de cada um, dizer aleluia e fazer uma prece; da mesma forma, à noite, o monge deverá recitar doze Salmos e depois sentar-se para o trabalho manual. João acrescenta que esta salmódia se faz com os lábios, evitando que os vizinhos ouçam (143). De seu lado, André confessa que, quando está doente, é incapaz de recitar um Salmo de boca por mais de um minuto, na hora das vigílias e, se o faz de memória, o sono o domina (88).


Estes vários testemunhos mostram bem a parte da salmódia, recitada nas vésperas e nas vigílias ou acompanhando o trabalho manual. “Quanto aos Salmos, não deixe nunca de estudá-los, pois eles são uma força; esforce-se por recitá-los de cor, pois isto será muito proveitoso. Mas aquilo que o ultrapassa, não tente entender...” (215). Este conselho de Barsanulfo, o sábio de Gaza, parece aplicar-se a ele próprio alimentando seus correspondentes com uma quantidade de citações dos Salmos. Um exemplo concreto desta pedagogia é dado a João de Beersheba, convidado a meditar sem cessar no Salmo 106, do versículo 25 ao 30[21], para passar da tempestade das provações ao “porto de sua vontade”, ao lugar de repouso (47). Juntamente com a salmódia, os solitários costumavam também recitar de cor passagens da santa Escritura.



Ruminação da palavra de Deus – A correspondência é menos explícita sobre a maneira como os anacoretas aprendiam de cor certas passagens das Escrituras. Os Salmos são evidentemente citados e Barsanulfo aconselha a um solitário recitá-los de cor porque seria para ele muito proveitoso (215). A questão é colocada muitas vezes em termos de ritmo, de tempos a respeitar entre a recitação da prece de Jesus, a dos Salmos e a do resto das Escrituras. A resposta dos dois Anciãos é unânime: faça uns e outros, diz João (175), faça-o na medida das forças que Deus lhe der, responde Barsanulfo a André (85). Se a oração é feita em pé e o trabalho manual sentado, o monge pode recitar os Salmos de cor permanecendo sentado (143). Esta recitação brota literalmente do peito do monge como bem exprime o verbo apostèhizo. Ela é feita geralmente de memória, o que absolutamente não exclui a presença de um antifonário ou da Bíblia. Assim a carta 147 apresenta um monge que passa a noite, do por do sol até a aurora, orando e recitando versículos.


Na Correspondência, dois livros são explicitamente nomeados: o livro mosaico (8), em referência ao texto do Deuteronônio VIII, 2-3[22] e o livro de (127), mencionando I, 21[23]. Em duas ocasiões, Barsanulfo assinala que suas próprias cartas ruminadas por seu correspondente “contêm”, se ele as compreender, o Antigo e o Novo testamentos (49). Ou ainda, os mandamentos do Grande Ancião contêm “toda a Biblioteca”, segundo uma expressão que o próprio são Bento retomará em sua Regra, no capítulo referente ao Carisma. A expressão pode contemplar a Bíblia e os escritos que contém a sabedoria do deserto. Em outras partes, a Bíblia é comparada aos livros de medicina úteis para nossa salvação (61).


Com mais freqüência, as referências mencionam a “Escritura” ou a “santa Escritura”. Na carta 4 endereçada a João de Beersheba, trata-se de “três testemunhos do poder de Deus e das Escrituras do Espírito Santo”. Estas três passagens são respectivamente uma referência a Isaías XXVI, 20[24], a 1 Coríntios VI, 17-18[25] e a Efésios V, 15-16[26]. Barsanulfo acrescenta  duas outras citações escriturárias convidando seu correspondente, João de Beersheba, a deixar de lado suas atividades para se preparar para a vida solitária: Lucas IX, 60 e 62[27]. Estes dois extratos da carta 4 devem ser lidos a partir da perspectiva que o próprio Barsanulfo indica: “Pois eu tenho em vista sua quietude, a que o espera em Jesus Cristo nosso Senhor” (4).



O exame de consciência – A carta 4, que acabamos de comentar, está fundamentada na santa Escritura. Sem dúvida, o próprio Barsanulfo ruminou as passagens que ele cita. As duas últimas referências do evangelista Lucas são propostas a João e Beersheba para que ele faça o exame de consciência de sua vida a fim de se preparar para a solidão completa. As citações que o monge aprende de cor e as que servem ao seu exame de consciência complementam-se imperceptivelmente. Os textos existem para unificar o ser humano em seu pensamento e em seu agir. Muitos textos refletem as preferências dos Padres de Gaza, sobretudo as de Barsanulfo. A título de exemplos, eis os mais freqüentes:


Torah – Gênesis XVIII, 27 e XLII. 6 (“cinzas e poeira”); Êxodo, XIV, 16-28 (“o faraó espiritual afogado”); Levítico XIX, 18 (“amarás o próximo como a ti mesmo”); Deuteronômio XXXI, 6 e Josué I, 6-9 (“seja forte e tome coragem”).


Profetas Isaías VIII, 18[28] (“eis-me aqui, eu e meus pequenos que Deus me entregou”); Isaías XLIII, 26 (“diga primeiro suas iniqüidades para ser justificado”); Ezequiel XVIII, 23 (“eu não quero a morte do pecador, mas que ele se converta e viva!”).


Livros sapienciais – Provérbios III, 34 (“é aos humildes que ele concede sua graça”); Provérbios XVIII, 19 (“o irmão que ajuda seu irmão é como uma cidadela fortificada”); Provérbios XXIV, 72 (“faça tudo com ponderação”); Salmo XXIV, 18 (“veja minha humildade e minhas penas e apague meus pecados”); Salmo LIV, 23 (“colocando nele todas as preocupações”); Salmo CI, 5-6 (“a dor em meus gritos fez-me esquecer de comer o pão”); Salmo CXLIV, 18 (“ele está próximo daqueles que o invocam em verdade”) e 19 (“ele fará a vontade dos que o temem”).


Evangelhos – Mateus VI, 8 (“vosso Pai sabe do que vocês precisam antes que lhe peçam”); VIII, 25 (“Senhor, socorro,  estamos perecendo”); X, 16 (“aquele que perseverar até o fim, este será salvo”); XI, 28-30 (“venham a mim os que sofrem (...) pois eu sou doce e humilde de coração (...) e vocês encontrarão o repouso”); XVIII, 18 (“tudo o que vocês ligarem sobre a terra será ligado no céu e tudo o que vocês desligarem na terra será desligado no céu”); Marcos IV, 8 (“outros grãos caíram na boa terra (...) eles renderam trinta por um, sessenta por um, cem por um”); Lucas VII, 47 (“seus inúmeros pecados lhe serão perdoados”); VIII, 24 (“Mestre, Mestre, vamos perecer”); IX, 60 (“deixe que os mortos enterrem seus mortos”); XII, 49 (“eu vim trazer o fogo sobre a terra”); XVII, 10 (“somos servidores inúteis”); XXI, 19 (“com sua perseverança, vocês ganharão a vida”); João V, 14 (“não peque mais”); XVI, 33 (“neste mundo, vocês experimentarão as adversidades, mas fiquem seguros, eu venci o mundo”).


Atos e Epístolas Atos XIV, 22 (“é preciso passar por atribulações para entrar no Reino de Deus”); Romanos II, 21 (“quem ensina ao próximo, não ensina a si mesmo”); 1 Coríntios II, 9 (“o que o olho não viu (...) tudo o que Deus preparou para os que o amam”); VII, 15 (“se o infiel quer se separar, que se separe”); X, 13 (“Deus é fiel. Ele não permitirá que vocês sejam tentados acima das suas forças”); Gálatas VI, 2 (“carreguem os fardos uns dos outros”); Efésios III, 20 (“aquele que por seu poder age em nós pode fazer por nós infinitamente mais do que podemos pedir ou conceber”); Tiago V, 6 (“rezem uns pelos outros para serem curados”); 1 Pedro V, 5-8 (“Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede sua graça aos humildes”).



A santa liturgia – Os monges alimentavam-se das santas Escrituras, mas acontecia muitas vezes que estas suscitassem acalorados debates, chegando até às contestações. Uma discussão surgira entre João de Beersheba e o abade Seridos: Barsanulfo lembra a importância de afastar toda cólera e irritação nas discussões (24). Ademais, esta mesma Carta 24 contém algumas citações fundamentais, evocando talvez uma leitura contínua que pode ter sido utilizada seja nos ofícios, nas vésperas ou nas vigílias, ou mesmo durante a santa eucaristia. Conhecemos também as questões teológicas que perturbaram Paulo o Solitário em suas meditações (Cartas 56 a 58).


A menção explícita da eucaristia aparece na meditação sobre a letra êta em que Barsanulfo fala do “sacrifício imortal oferecido pela vida do mundo” (137b). No mais das vezes, é o coração do monge que é “o santuário do altar do homem interior no qual são oferecidas a Deus as vítimas espirituais, em que são apresentados o ouro confirmado, o incenso e a mirra, onde é imolado o bezerro gordo[29] e no qual é espalhado o sangue precioso do cordeiro imaculado” (201).




A INTERPRETAÇÃO DAS ESCRITURAS POR BARSANULFO


A lista das citações explícitas e implícitas das santas Escrituras comentadas por Barsanulfo impressiona. Seu conhecimento é vasto. A maior parte dos livros do Antigo e do Novo Testamento é mencionada de forma desigual. Estudos mais refinados poderiam avaliar as passagens preferidas do autor e as razões de sua utilização. Com era costume entre os monges, além do abundante uso dos Salmos, o Grande Ancião apóia-se freqüentemente nos livros sapienciais, no livro de , nos Provérbios, no Eclesiastes, um pouco no Cântico dos Cânticos e no Livro da Sabedoria. As menções aos livros proféticos concentram-se nos mais antigos, como Isaías, citado muitas vezes, seguido de Jeremias, Ezequiel e os demais.


O Novo Testamento ocupa o lugar principal: são abundantes as citações. De novo, é interessante observar de perto o uso explícito que os mestres de Gaza fazem desta ou daquela passagem das santas Escrituras. Os quatro Evangelhos são citados muitas vezes, e o Sermão da Montanha ocupa um lugar de destaque. Dentre as epístolas paulinas, Barsanulfo gosta de citar as dirigidas aos Romanos, aos Coríntios e sobretudo aos Hebreus. A perspectiva do reino que virá explica em parte este emprego.


Os textos joaninos são bem conhecidos e, como de costume nas obras monásticas, a Epístola de são Tiago é uma referência; aqui, é a coerência da vida que é sublinhada.


Desta primeira olhada impõe-se uma constatação. Barsanulfo possui um conhecimento excepcional da Palavra de Deus que o alimenta. Ele se afirma como mestre espiritual por sua explicação e por sua atualização das santas Escrituras. Barsanulfo dá grande importância à sua maneira de comentar a Palavra de Deus, que visa sempre transformar a vida de seus correspondentes. O alcance moral de seus comentários, em sua perspectiva prática, domina seu pensamento. Mas sua leitura da Bíblia é brilhante, colorida, livre e rica.


Muitas vezes, um argumento é apoiado por dois ou três testemunhos tirados do Antigo ou do Novo Testamento. No início da Carta 4, lemos: “Escreva ao irmão João: Eis que eu lhe envio três testemunhos do poder de Deus e das Escrituras do Espírito Santo, por meio dos quais eu incito meu espírito a manter-se atento a Deus e aos pensamentos do Espírito Santo, a fim de que você conheça o que é oportuno...” A Carta 31 abre com três citações contra o desencorajamento nas atribulações; ela continua com a evocação das grandes figuras Bíblicas como José, Moisés, Davi, Jonas, Jó, Paulo. Barsanulfo não ignora que tanto Jó como Abrahão designam a si mesmos como “cinzas e poeira”.


Numerosas cartas são pequenos tratados nos quais encontramos reunidas muitas passagens das Escrituras que servem à mesma argumentação. Esta saborosa leitura bíblica fundamenta a escolha de João de Beersheba, sustenta André em sua enfermidade, aparece na resposta do Grande Ancião ao irmão inquieto com a aproximação de sua morte.


***


Duas reflexões que o Grande Ancião faz a João de Beersheba são das mais explícitas. São elas: “Rumine minhas cartas e você será salvo. Pois você tem nelas, se as compreender, o Antigo e o Novo Testamento. E tendo-as em mente, você não precisará de outro livro” (49); e em outra parte: “A respeito de outras regras (dadas a João de Beersheba para sua salvação), isto não é mais necessário. Contente-se com as que já lhe escrevi; pois elas são suficientes para conduzir o homem do começo até o fim. Medite-as, guarde-as na memória e nas as esqueça. De fato, elas contêm toda a biblioteca” (32).


Essas palavras merecem reflexão, pois parecem precisar de uma compreensão em diversos níveis. O primeiro nível consiste em reconhecer a primazia absoluta da Palavra de Deus. Barsanulfo coloca-se assim na tradição dos Padres da Igreja, Orígenes, os Alexandrinos, os Capadócios, são Basílio e são Bento. A correspondência dos monges de Gaza, como as Regras de são Basílio, apresenta-se como um comentário, uma explicação da sagrada Escritura adaptada a cada pessoa para auxiliá-la, nas circunstâncias dadas, a colocar em prática aquilo que ela ouviu. Em segundo lugar, o Grande Ancião tinha consciência de extrair da santa Escritura “o que é útil à alma”, ou seja, aquilo que terá um alcance na vida de seu correspondente e que iluminará seu caminho pessoal.


Neste sentido, os Padres de Gaza, como os Scetiotas, estão muito próximos da tradição judaico-cristã helenística, acolhendo a Palavra como uma Palavra de vida, uma Palavra eficaz. Segue-se que a autoridade de quem a pronuncia é incontestável e que não existe separação possível entre a Palavra de Deus, a do mestre espiritual que a comenta e que foi escolhido por eles, e sua colocação em prática. Quando Barsanulfo dita suas cartas ao abade Seridos, é um verdadeiro ritual sagrado que se desenrola. O Espírito Santo está verdadeiramente presente aí e age por intermédio dos seus servidores.


O pensamento de Barsanulfo é habitado por um duplo movimento. Tanto transparece aqui e ali uma profunda humildade fundada sobre o reconhecimento de sua própria fraqueza, quanto uma segurança firme e tranqüila na autoridade de suas palavras. Quantas vezes não recomendou ele a João de Beersheba que tomasse a sério seus escritos. Os dois trechos citados mostram que Barsanulfo tinha em alta estima aquilo que escrevia e também consciência de participar da salvação dos solitários que lhe foram confiados, interpretando para eles o sentido da vontade divina.


Falta reconhecer o imenso conhecimento do mestre de Gaza a respeito das santas Escrituras. Ele passeia pelas Escrituras como em um jardim paradisíaco aonde ele colhe flores susceptíveis de curar e salvar seus correspondentes, em cada momento crucial de suas vidas, e até o fim de suas existências. A interpretação alegórica e espiritual das santas Escrituras comentadas por Barsanulfo alimentam também as leituras bíblicas dos discípulos que não tinham todos recebido uma formação exegética e uma compreensão da palavra de Deus. O exemplo de Paulo ilustra bem a mentalidade de alguns.


***

A interpretação das Escrituras dada por Barsanulfo em sua correspondência retoma o melhor da tradição alexandrina. O Padre de Gaza pouco entra na explicitação do sentido histórico, moral e mesmo místico desenvolvido por Orígenes, para ir diretamente ao sentido espiritual dos textos. Este sentido, que vem depois do sentido místico, aprofunda, interioriza, completa o sentido dado. Trata-se antes de tudo aplicar a palavra de Deus à vida de quem o consulta nas questões presentes que ele se coloca.


É precisamente o que fazia Orígenes quando aplicava aos cristãos a prece de Moisés contra Amaleque no combate dos Hebreus: “Quando Moisés erguia seus braços, Amaleque era derrotado, mas quando os deixava cair, cansado, Amaleque retomava a dianteira. Também nós, levantemos os braços na força da cruz de Cristo, ergamos em oração as mãos santificadas[30]”. Não é a mesma coisa praticada pelos irmãos de Gaza em sua ruminação da palavra de Deus e em seu trabalho, tanto sentados como de pé? Este combate tomou formas extremamente concretas e, a propósito de Amaleque, em sua meditação sobre a letra êta, Barsanulfo enumera as paixões, sementes de Amaleque.


A um monge que tem o coração pesado de sono, sem compunção, João o Profeta cita a Epístola aos Efésios e o Livro dos Juízes: “... nós depositamos nossa impotência na presença daquele que pode fazer muito mais do que pedimos ou concebemos, até que ele destrua diante de nós os campos dos Amorreus e impeça Madian, Amaleque e os filhos do oriente de destruir nossas colheitas.” (167).


Como vemos, Barsanulfo e João de Beersheba vão diretamente ao sentido interior, ciosos em conduzir seus correspondentes a que conformem suas vidas ao Evangelho segundo a tradição monástica. O combate é sempre travado seguindo Cristo e com ele em uma atualização diária. Cada uma das figuras do Antigo e do Novo Testamento contribui com sua maneira de iluminar o rosto de Cristo presente em toda a Escritura. Jó evoca a perseverança, José a castidade e o trabalho, Moisés a doçura, Josué a coragem nos combates, os Juízes a conduta nos negócios, Davi e Salomão a submissão dos inimigos, os Israelitas a tranqüilidade da terra. Podemos ainda citar Abrahão, Jonas e outras figuras mais.


Aas alusões aos personagens do Antigo Testamento sugerem que o monge está convidado a imitar seu comportamento. Na biografia de Antônio, santo Atanásio sugere que este herdou os dons de Moisés, Samuel, Elias, Eliseu, Jó... Na coleção sistemática dos Apoftegmas, este procedimento escriturário reaparece freqüentemente: Noé representa a pobreza, Jó as provações, Daniel o discernimento. São os sinais de uma vida solitária identificados pelo abade Poêmio.


As figuras do Novo Testamento não faltam e seria cansativo mencioná-las; o paralítico evoca o perdão dos pecados e a cura dos corpos, Pedro é salvo do mar agitado, Paulo escapa às atribulações, etc.


Esta tipologia é orientada para a Cruz de Cristo que é o símbolo central do solitário de Gaza, peregrino nos caminhos desta terra. O horizonte é sempre este reino dos céus que nos abre “aquilo que os olhos não podem ver, que o ouvido não pode escutar (...) tudo o que Deus preparou para aqueles que ele ama”.


O meio monástico de Barsanulfo de Gaza se inscreve definitivamente, em uma orientação fundamental, unificada, inteiramente voltada para um só objetivo. Este implica um contínuo ajustamento entre palavra e vida. A grande preocupação, na linha dos Padres do Egito, consiste precisamente em que a semente da Palavra traz os melhores frutos possíveis para a vida do buscador de Deus. O ambiente das citações bíblicas merece a este respeito toda nossa atenção.


“Lembre-se do que está escrito”, apela para a memória das Escrituras ao destinatário da carta. Isto revela até que ponto Barsanulfo interiorizou, ele mesmo, a Bíblia, como se dizia de santo Antônio: “Sua memória lhe servia de biblioteca”.


Barsanulfo convida sem cessar seus correspondentes a que deixem descer sobre si esta Palavra para que ela preencha todos os recantos do seu ser. O maior inimigo da lembrança, da lembrança de Deus, é a indiferença e o esquecimento. Uma palavra, escutada para ser vivida, incendeia quem a ouve e está sempre a ponto de cumprir-se. Ela primeiro é realizada pelo coração que deve se converter, firmar-se, habitar na confiança, na paz e na humildade. Na carta 20, Barsanulfo recomenda a João de Beersheba: “Faça a doçura repousar em seu coração, lembrando-se de Cristo, cordeiro sem malícia, e de tudo o que ele suportou, ele que era inocente...”


Aqui como em outras ocasiões, Barsanulfo reveste sua linguagem de imagens bíblicas. Na carta 11: “Salomão fala a respeito de seus pais: ‘Aqueles que me instruíram e disseram: que nossas palavras fiquem ancoradas em seu coração’. Da mesma forma, irmão, eu lhe digo: que minhas palavras fiquem ancoradas no seu coração e que você medite sem cessar nas coisas que eu lhe escrevi, conforme o que Deus disse pela boca de Moisés: ‘Prenda-as à sua mão direita e elas estarão constantemente postas diante dos seus olhos. Medite-as ao se deitar e ao se levantar, em viagem ou em sua casa’.”


As palavras de Deus e as de Barsanulfo estão tão intimamente ligadas que o mestre de Gaza passa facilmente de um a outro. No final da carta 17, ele declara: “Assim, você recebeu de mim um alimento conforme Deus, para muito tempo.” No início da carta 43, lemos: “Se alguém beber da água que eu lhe envio por carta, não terá sede nunca mais.”


A escatologia desempenha um papel essencial em toda a argumentação de seu pensamento. A hora do êxodo, a morte, o juízo e o que está além estão sempre presentes em seu espírito. “Você, portanto, homem de Deus, escreve ele a João de Beersheba (10), corra sem relaxar no caminho que lhe foi preparado, a fim de chegar alegremente ao porto de Cristo ao qual chegamos nós, e ouvir as palavras de felicidade cumprida, palavras de luz, regozijo e alegria: ‘Muito bem, servidor bom e fiel, etc.’.” Ou ainda a carta 36, na qual Barsanulfo considera que é chegado o momento de seu discípulo entrar para a solidão. “Quem ignora, de fato, que estamos nos últimos tempos?”, pontua seu pensamento (36).


Uma frase chave explica a hermenêutica do pensamento do santo recluso: “O filho de Deus se fez homem por você; torne-se, você também, Deus por ele” (199). Pois ele quer, a cada vez, que seu correspondente queira. É, com efeito, o Espírito Santo que fala por intermédio de Barsanulfo e estas não são as palavras de um homem (199). “Eu peço que você seja filho de Deus, diz Barsanulfo na mesma carta; sofra e sue também você, junto comigo”. E mais adiante: “Jesus disse aos seus Apóstolos: ‘Vocês são o sal da terra’. Ora, a terra é seu corpo, pois está escrito: ‘Você é terra e à terra retornará’. Seja então sal para você mesmo, salgando e dessecando as podridões e os vermes, ou seja, os maus pensamentos” (199). E o Grande Ancião conclui sua carta em uma perspectiva de futuro: “Eu espero que você entre no porto da vontade de Deus conforme você me dê a mão na medida de suas forças. Pense nas palavras que lhe são dirigidas siga-as e você chegará ao objetivo, segundo o que foi dito: “Corram de modo a ganhar o prêmio”.


A primazia da Palavra divina preenche toda a carta. Barsanulfo, em sua extrema humildade, é portador do Espírito Santo e o discípulo é convidado a entrar em um movimento de conversão sustentado pela oração e pela ascese daquele que o guia. Toda a carta aponta para diante, ou seja, para o retorno do filho de Deus e seu julgamento.


O Padre de Lubac sublinhava em seu estudo sobre Orígenes o quanto a Epístola aos Hebreus era importante no meio alexandrino por sua tensão que aponta para o Reino. Com Barsanulfo, esta tradição floresce de maneira nova. Também para ele, com efeito, a Epístola aos Hebreus desempenha um papel capital na herança da vida eterna, quando, na hora da apresentação ao juízo final, ele poderá dizer por sua vez ao Senhor Jesus: “Eis-me aqui, eu e aqueles que me foram dados.”




3. O ENSINAMENTO DE BARSANULFO AOS SOLITÁRIOS DE GAZA


A palavra de Barsanulfo, marcada pelo desejo, é transportada sobre a flecha do tempo que escoa e sobre a da história da salvação. As palavras, as imagens, as idéias e os conselhos encontram aí uma última luz que ilumina e envolve toda a realidade da compaixão e da misericórdia divina.


Sobre este pano de fundo desenrolam-se esses diálogos inéditos entre o discípulo que interroga e o mestre cheio de uma grande humildade e de uma audácia rara em seu tempo.


A correspondência apresenta-se como o espelho fiel das questões essenciais colocadas pelos solitários e os monges do cenobium do abade Seridos na vida de todos os dias. Neste sentido ela sempre apela ao respeito. As respostas de Barsanulfo e de seu companheiro de solidão, João o Profeta, brotam desta solidão e do desnudamento do deserto, numa reclusão cada vez maior, ao mesmo tempo em que elas são tocadas pelo sopro do Espírito Santo que lhes comunica uma alegria transbordante – para não dizer exultante – e uma esperança sem limites. As provas, as derrotas, as cruzes surgem no caminho; elas estão presentes na maior parte das cartas. Mas a criação nova, não nasce ela das provas? Não é preciso ser testado para se tornar como o ouro que passou no crisol?


Ao longo das questões colocadas, três seqüências se misturam e entrecruzam: o discernimento daquilo que é bom ou mal, em face do Adversário, ao Intrigante que se serve precisamente do desejo por Deus para transformá-lo em falta de fé ou em acídia, esta forma de desencorajamento melancólico diante do essencial; em seguida vêm os remédios propostos para o combate cotidiano e a oração; e mais fundamental ainda, a convicção de que somente Jesus nos salva, ele o Guia e o Piloto que no Espírito Santo nos conduz ao Pai por intercessão da Virgem Maria, a oração aos santos e a oração aos Padres.



A hora da apresentação – As trocas epistolares entre Barsanulfo e um solitário enfermo, André, testemunham o caminho percorrido na doença, as provações até o perdão de todos os seus pecados. André e seus companheiros pedem ao Grande Ancião que os apresente à santa Trindade numa prece a fim de que eles sejam preservados de todo mal. Barsanulfo lhes dirige então a carta 117. “É no momento da apresentação que nosso Salvador remeterá o reino de Deus a seu Pai, brilhando com inefável claridade. Ele dirá estas palavras cheias de felicidade, alegria e exultação: ‘Venham abençoados de meu Pai, recebam como herança este reino que lhes foi preparado desde a fundação do mundo’. Então, cada um dos santos, levando até Deus os filhos que salvou, dirá com voz sonora, com plena e grande vivacidade, para espanto dos santos anjos e de todas as potências celestes: ‘Eis-me aqui, eu e as crianças que Deus me deu’. E não apenas ele os apresentará a Deus, mas apresentará também a si mesmo, e então ‘Deus será tudo em todos’. Rezem para que cheguemos aí. Bem-aventurado com efeito, o que espera e alcança.”


Tudo está aí: o presente, o caminho a percorrer até a morte e a hora da apresentação final. Esta carta é representativa também do modo como o Grande Ancião situa as relações entre André e seus companheiros, ele próprio, cada um dos santos, Jesus e seu Pai. Em pé, Barsanulfo falará com voz forte, vivamente, para estupefação das potências celestes. Mais do que tudo, está esta solidariedade última para com os seus que vai até o fim e mesmo além, exprimindo melhor do que todos os discursos o laço que unia o Grande Ancião aos que o consultavam.


Esta relação transparece desde o modo como Barsanulfo se dirige a cada um: filho querido, criança bem-amada, amigo verdadeiro, irmão, bem-amado em Cristo, irmão querido que é um comigo, bem-amado irmão de minha alma, companheiro, companheiro de serviços, você que participa da luz dos santos, co-herdeiro, você que sofre e sua comigo – mas também irmão indolente e letárgico. A comunhão no combate, a comunhão na morte e a comunhão na glória são uma coisa só.


Mais tarde, quando o Grande Ancião aproxima-se da morte, um irmão aflige-se com isto e o interroga. Vale a pena ler esta longa carta 187, ornamentada de citações bíblicas: “Eu não os abandonarei absolutamente durante os anos de minha vida e no último dia não os deixarei órfãos...” Depois, voltando ao momento da última apresentação, ele retoma a mesma idéia: “Eis-me aqui, eu e os pequeninos que o Senhor me deu; guarde-os em seu nome; que sua direita os proteja. Conduza-os até o porto de sua vontade e escreva seus nomes no seu livro...” E sua solicitude para com os seus chega até a audácia: “Creia-me, irmão, meu espírito dirá de boa vontade a meu Mestre que se compraz com a oração de seus servidores: ‘Mestre, ou introduza a mim e a minhas crianças em seu reino, ou apague-me de seu livro’. A vocação de Barsanulfo é de ser julgado digno de conduzir os seus a seu Deus e de os apresentar para que Cristo escreva seus nomes em seu livro.


A continuação da carta insiste no papel daqueles que carregam miríades de homens com suas “orações que brotam como relâmpagos e raios de sol; elas sobem e o Pai se compraz com elas, o Filho se regozija nelas e o Espírito Santo glorifica-se com elas.”


Não podemos compreender a pedagogia do Grande Ancião de Gaza sem guardar na memória esta última apresentação diante do Senhor Jesus. Toda ascese e toda confiança em Deus que ele desenvolve é sustentada por esta espera final. “Aquele que perseverar até o fim, este será salvo” (187). “Oremos ao Senhor noite e dia, prossegue ele na mesma missiva, para que não sejamos separados de nossos Pais nem neste mundo nem no outro. Aonde iríamos nós? O que poderíamos encontra de melhor?...”


Esta visão do Grande Ancião fornece um outro esclarecimento à oração de Euthymo dirigida ao Senhor Jesus: “Como você me prometeu por intermédio do seu servidor Barsanulfo em suas cartas que seríamos enterrados na mesma tumba, ressuscitaremos também juntos?” O contexto é bem o do juízo final (60). A resposta de Barsanulfo faz eco aos dois extratos apresentados acima: “Não busquemos saber se ressuscitarão todos, responde ele a Euthymo, mas desejemos escutar: ‘Venham os abençoados por meu Pai, recebam em herança o reino que lhes foi preparado desde a fundação do mundo’, e queiramos estar junto com Jesus ‘no Pai’ como ele disse. A ele a glória. Amém” (60).



O tempo de uma vida – a história da salvação se inscreve na duração do cotidiano de cada correspondente. A vida do eremita inclina-se e aponta para a “salvação” e para alcançá-la este deve “passar pela porta estreita” e “percorrer o caminho estreito e apertado que conduz à salvação”. Barsanulfo acompanha os seus pelo caminho com a mesma solicitude com que pretende se manifestar na hora decisiva da apresentação final.


“Aquele que quer conhecer um caminho perfeito deve saber isto: se ele não caminhar com seu guia desde o ponto de partida até o termo da viagem, jamais ele atingirá a cidade” (126) Ou ainda: “Eu falo a você como aos outros, a você que deseja seguir voluntariamente por causa do seu Nome o caminho sobre o qual marchamos nas privações e nas aflições” (192). Assim, aquele que caminha para a cidade não deve dormir nem olhar para trás (33). A André, ele lembra: “Esteja preparado para as tentações e as aflições a todo instante e esqueça o que ficou para trás, como o Apóstolo que se inclina inteiramente para diante” (99).


Esta perspectiva sustenta todo o pensamento do Grande Ancião que apela ao discípulo para que persevere até o fim. Ela consiste primeiramente em permanecerem em comunhão um com o outro até o último suspiro. É o que Barsanulfo escreve a Paulo: “Que Deus lhe dê a paciência para permanecer comigo, seu bem-amado, na paz, até o último sopro, como nos deu a conhecer antecipadamente por sua graça aquele que disse: ‘Aquele que perseverar até o fim, este será salvo’.” (57). E na mesma carta: “Se tivermos este amor, nada nos separará uns dos outros até a morte” (57). Ele encoraja André, o solitário enfermo: “Aquele que se entregou a Deus deve remeter-se a ele com todo o coração até a morte” (72).


A regra dada a André é de manter-se atento aos seguintes pensamentos: “Como me apresentarei a Deus? Como passei o tempo transcorrido? Farei a penitência ao menos agora que se aproxima minha partida; suportarei meu próximo, assim como as aflições e as tentações que me vêm dele, até que o Senhor me faça misericórdia” (92). Por toda parte aflora esta presença divina que nos sustenta até o termo da via e o encorajamento à perseverança até o fim.


Sobre a aproximação da morte, é preciso reler as raras cartas endereçadas pelos dois Padres de Gaza a um irmão atingido pela tísica, Dositeu (220 a 223), e a bela oração na qual Barsanulfo apresenta à santíssima Trindade um irmão que se prepara para a morte (219).


“E agora...” – No cruzamento entre o passado e o futuro entre o tempo que escoa e a eternidade, dois momentos se conjugam e se correspondem: o da pergunta e o da resposta.


O momento da pergunta corresponde a uma necessidade de discernimento, de escolha de vida, de confusão, de tentação ou de desencorajamento. Toda a correspondência ilustra isto. A Euthymo, Barsanulfo escreve: “Irmão, a divina Escritura diz: ‘Faça tudo com ponderação’ e ‘Nada faça sem ponderação’. Quando você agia não com ponderação, mas segundo a sua vontade, seu espírito não tinha noção do esforço” (66).


A mesma recomendação é repetida a João de Beersheba. “Daqui para frente seja vigilante para exterminar com vigor as oito nações estrangeiras (entenda-se: as oito paixões). Não se deixe arrastar por infantilidades e adquira a firmeza, que é, de fato, simplicidade, porque você ouviu muitas vezes: faça tudo com ponderação” (44).


A pergunta é fonte e indício de uma necessidade de discernimento[31]; ela é ao mesmo tempo uma provocação aos demônios que a detestam (64; 66). Ela está ligada a uma prática de vida e a resposta de Barsanulfo implica de sua parte um engajamento de vida: “Tenha como certo, irmão, escreve ele a Euthymo, que se eu não o considerasse um comigo, pelo amor de Cristo, eu não lhe daria resposta” (64). Barsanulfo ama a clareza. Sua resposta passa necessariamente por aquele a quem ele dita suas cartas e que as entrega, o abade Seridos. Ele também desaprova o irmão que escreve por enigmas para evitar sem compreendido pelo abade Seridos. O Grande Ancião encoraja João de Beersheba a pedir explicações ao mesmo Seridos se ele encontrar em suas cartas coisas difíceis de compreender (10;13).


As respostas dos sábios de Gaza correspondem precisamente a um momento de esclarecimento que implica um engajamento de toda a pessoa. Uma citação bíblica retorna freqüentemente como um refrão: “E agora, Israel, escute as leis e os costumes que eu lhes ensino hoje para colocá-los em prática a fim de viver e entrar em sua posse, no país que Javé, o Deus de seus pais, lhes deu[32]”.


A alusão a este texto se limita muitas vezes às duas primeiras palavras: “E agora”. É um apelo constante a começar, côo expressava à sua maneira o abade Arsênio: “Ó Deus, eu não fiz nada de bom ante seus olhos; mas permita-se, conforme sua bondade, começar agora[33]”. A João de Beersheba, é dito: “Seja obediente e humilde e a cada dia preste contas a si mesmo. O profeta já queria dizer ‘cada dia’ quando ele falou: ‘E eu disse: agora eu começo’. E Moisés: ‘E agora, Israel’. Guarde assim, também você, este ‘agora’.” (21).


Trata-se de um apelo para viver no presente, a começar e recomeçar sempre, a nunca desertar[34]. Mas o monge, no caso Euthymo, sabe bem que somente Jesus pode salvar neste “hoje”: “Agora, escreve Euthymo, alguém me estimula a despertar o piloto para que ele me dê a mão e me tire do abismo, como fez com Pedro e também tal como me disse: “Porque você duvidou, homem de pouca fé?” Voltaremos a isto mais adiante.


O monge é chamado a captar o instante presente sem agir, como o homem que ia à igreja rezar para obter o que comer. No caminho, ele encontrou alguém que lhe disse: “Venha comer comigo hoje, depois você irá à igreja”, mas ele recusou o convite (6).


As citações do livro do Deuteronômio IV, 1 – “E agora” – e do Salmo XCIV – “Hoje, se vocês ouvirem sua voz...” – inscrevem-se no contexto de Hebreus III, 7-4, 11 (mesmo que a passagem não seja explicitada) interpelando Barsanulfo como antes Orígenes e os Alexandrinos. Neste repouso, diz o salmista, e Barsanulfo depois dele, podemos penetrar “hoje”; o “agora” torna-se o momento de entrar desde hoje, de modo antecipado, no repouso de Deus, na terra prometida. Este momento de conversão passa pelas próprias palavras do Grande Ancião.



Uma palavra de vida – A palavra de vida, que os discípulos pedem a Barsanulfo, lhe é arrancada contra sua vontade. Homem de fé e de silêncio, ele é constrangido por aqueles que o consultam a falar. “Irmão, não me force a falar, a mim que pretendo abraçar a quietude e o silêncio[35]” (69). “Eu me forço a dizer coisas que me ultrapassam e não há necessidade. Talvez também não haja ninguém capaz de recolhê-las e compreendê-las, fora uns poucos. Que o Senhor o conduza a esta alegria” (154). Ou ainda, a um monge egípcio: “Creia-me, bem-amado, é constrangido pelo amor a Deus que eu ultrapassei meus limites para dizer isto à sua . Com efeito, que sou eu? O menor dos homens. Assim eu lhe peço perdão... desculpe minha falação...” (55).


Este sopro que obriga o Grande Ancião a falar é o próprio Deus (31), o Espírito Santo: “Escute, irmão bem-amado, e aplique seu coração em guardar as palavras divinas que lhe são ditas não por um homem, mas pelo Espírito Santo. Jesus é o médico das almas e dos corpos. Se você tem um ferimento, eu o conduzirei a ele e rezarei para que ele o cure, se você também quiser[36]”(199).


Estas palavras, arrancadas ao silêncio que as envolvia, convidam à conversão. A primeira etapa do discípulo consiste em discernir as palavras que são ditas, compreendê-las, guardá-las e colocá-las em prática. Ficamos aturdidos em ler da própria pena de Barsanulfo, que ele considera suas próprias palavras como um prolongamento do Antigo e do Novo Testamento. Que João de Beersheba rumine suas cartas e ele será salvo (49). O Grande Ancião reitera a seu discípulo suas recomendações a fim de que este último escute realmente o que lhe é dito, como se ele não se conformasse apenas com o que lhe é proposto. Ele não está só. A mesma observação é feita a outros correspondentes.


Pobre de quem ensina a outros e não ensina a si mesmo (68)! Barsanulfo tem a consciência de que isto se dirige a ele próprio. Ele tem noção dos seus limites, e sabe que deve falar dentro de sua medida. Assim, de maneira imperceptível e inelutável se opera uma passagem das palavras à ação. A coerência entre a escrita e a ação passa pelo coração, lugar de conversão. Cada um poderá chegar aí na medida de sua fé e de suas forças. “Irmão, você escava pouco a pouco para encontrar as coisas ocultas e eu, tolo como sou, penso que aquilo que você pede, ninguém é capaz de discernir, senão aquele que chegou a este termo” (154).


Barsanulfo está inteiramente implicado na relação com seus discípulos. Ele o faz na medida de suas forças e se adapta sem cessar às possibilidades dos que o consultam. A expressão mikron,[37] “um pouco”, no sentido de orar um pouco, comer um pouco, salmodiar um pouco é característica do seu discernimento.


A Paulo o Solitário, ele repete as palavras de Ruth: “Que não me aconteça separar-me de você. Somente a morte nos separará” (57). Ele fala a seus companheiros como se fossem ele próprio. Com suas orações e presença ele acompanha os que nele confiam: “Não está você seguro, escreve a João de Beersheba, que aonde quer que você vá, e faça o que fizer, meu coração estará com você” (28).


A um anacoreta, ele escreve: “Pene e sue também você, comigo... O filho de Deus se fez homem por você; torne-se você também Deus por ele!” Assim, para que se tornem eficazes, as palavras do Ancião devem passar pelas penas e pelo suor (199).  “Se você diz, mas não sustenta, o que você diz é fora de propósito”, afirma ele a outro monge (101).


Poucas vezes um mestre de vida voltou tantas vezes sobre as questões últimas da existência. Tudo é levado pelo “desejo de salvação” e “pelo que é útil à alma”. Apenas esta necessidade justifica que o grande Sábio de Gaza saia de seu silêncio. Sua palavra de vida prolonga a palavra sagrada. Ela apóia-se na recitação dos Salmos, na ruminação das santas Escrituras, no exame dos pensamentos e do coração. São pontos fixos que dão o ritmo ao dia do solitário, habitado pelo Sopro divino. Pouco a pouco, o coração do asceta se transforma pelo reconhecimento de seu pecado e a acolhida da misericórdia divina. Ele passa das lágrimas à alegria e à ação de graças.


É o paradoxo da vida deste sábio, mestre de si, que renunciou a tudo, mas que ao mesmo tempo sente interiormente toda a fragilidade dos seus correspondentes. Não é ele que repete incansavelmente ser nada, ser apenas cinzas e poeira, um verme que nem chega a ser homem, que não está sequer à altura de responder aos que o consultam? Simultaneamente, ele afirma com autoridade a palavra que se refere aos ditos do próprio Jesus que declarou a seus discípulos que eles fariam coisas ainda maiores do que seu mestre. Suas próprias palavras são levadas pelo Espírito Santo, de certa forma investidas da autoridade do próprio Jesus, e seus correspondentes são instados a escutá-lo com respeito e colocar em prática aquilo que ele propõe. Se eles obedecerem, eles entrarão no “porto do repouso”. Eles conhecerão a felicidade e, ademais, estarão em grande comunhão espiritual com Barsanulfo, os seus, os santos e o próprio Cristo.


***


No início do ensinamento de Barsanulfo, sobre um plano antropológico, existe uma noção e um tipo de comportamento que podemos qualificar de equânime. De que se trata? Possui esta prática de vida matizes estóicos ou será ela fundamentalmente cristã? Vejamos esses textos e tentemos esclarecê-los a seguir por meio de duas noções fundamentais: a humildade e o amor.


A Euthymo, que o interroga a respeito do caminho da vida, Barsanulfo responde sem sombra de hesitação: “Como você deseja saber claramente o assunto, eu lhe direi: mantenha-se interiormente como se estivesse morto para o mundo”. E ele insiste: “Se então você quiser conhecer o caminho, eis no que ele consiste: considere aquele que agride como quem acaricia, o que repreende como quem glorifica, o que insulta como quem elogia” (68).


Se o vocabulário utilizado pelo Grande Ancião é inabitual na tradição monástica e mesmo nele próprio, ele resume uma idéia corrente entre os Padres monásticos, como expressa o solitário da carta 185, que leu na Vitae Patrum: “Aquele que quer ser salvo deve, antes de mais nada, dentre os homens, suportar injúrias, reprimendas, ultrajes, todas perdas por ter libertado seus sentidos e por ter alcançado a quietude perfeita como a fez nosso Senhor.” Como interpretar estes textos?



Equanimidade – Podemos entender os dois extratos de correspondência acima de duas maneiras. A primeira, de intenção estóica, equivaleria a dizer: veja com um coração neutro, sem estados de alma, por assim dizer, tanto o que agride como o que acaricia, tanto o que ofende como o que honra. Não é esta a perspectiva dos monges de Gaza. Trata-se antes de acolher plenamente as duas situações, penetrando nas suas realidades e aceitando-as por inteiro, ou seja, com empatia, , compaixão, ao mesmo tempo em que se conserva uma serenidade interior, paz e repouso.


No centro desta maneira de agir está o modelo do próprio Filho de Deus “que se fez obediente e foi obediente até a morte”. A Euthymo, Barsanulfo repete de muitas maneiras que é preciso morrer à auto-estima para entrar na paz e no amor de Cristo e do próximo: “mantenha-se interiormente como se tivesse morrido para o mundo” (68), “acabe com esta mania de se justificar” (68), “condenar a si próprio, deixar para trás as vontades e se considerar inferior a todas as criaturas” (69), “ser cinzas e poeira (...) em tudo buscar a humildade, pois a humildade nos atira ao chão; e aquele que está por terra, aonde poderá ele cair?” (70).


Esta maneira de agir implica uma morte para si mesmo, por meio da humildade, da obediência, da submissão mesmo. O modelo disto é o Cristo do hino aos Filipenses[38], que deu sua vida por nós. A humildade, em Barsanulfo, está ligada ao amor fraternal descrito no capítulo 13 do Evangelho de são João. É preciso reler aqui a carta 61 dirigida a Euthymo e que une os dois textos escriturários: “Ele próprio [Jesus] fez-se nosso modelo. Com efeito, foi dito que ele ‘humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte’. E ao dar sua vida por nós, ele nos ensinou a lição: ‘Amem uns aos outros como eu os amei’ e ‘quanto a isto, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos se amarem uns aos outros’. Se você não quiser vacilar, tome o bastão da cruz, coloque suas mãos nele, morra e você não vacilará mais...” (61).


O clima geral em que se desenvolve a equanimidade abarca duas correntes. A montante, escreve Barsanulfo a Euthymo, o fundamento é a humildade e a cruz de Cristo; a jusante, é a  e a compaixão que nascem de uma prática de vida. Veremos mais adiante que estas duas dimensões da equanimidade vão dar corpo à invocação do Nome de Jesus e à oração de Jesus. O princípio da equanimidade, entre os Padres de Gaza[39], recebido dos monges do Egito, consiste exatamente em suportar as injúrias como elogios de um coração cordato, ou seja transformado pela humilhação de Cristo e seu amor pelos homens[40].



Humildade e caridade, fundamentos da equanimidade – A humildade é uma disposição fundamental. Ela afasta todo desejo de comparação. Ela extrai sua força do exemplo de Cristo que se fez obediente Este duplo movimento é onipresente na correspondência, referindo-se aos textos escriturários já mencionados.


“Não aspirem às coisas elevadas, mas deixem-se atrair pelo que é humilde”, repete Barsanulfo em três ocasiões, revelando o fundo do seu pensamento a Euthymo. “Rendamos graças ao Filho que se humilhou, fazendo-se obediente até a morte na cruz por todos os homens (...) em tudo buscar a humildade, pois a humildade nos atira ao chão; e aquele que está por terra, aonde poderá ele cair? É evidente que aquele que, ao contrário, está nas alturas, cairá facilmente. Assim, se fomos convertidos e reformados, isto não vem de nós, é um dom de Deus.”


Toda a carta 70 é uma ação de graças ao Pai que teve piedade do mundo, ao seu Enviado, o Filho, redentor e salvador das nossas almas e ao Espírito Santo Vivificador que sempre previne e destrói as redes do inimigo àqueles que o invocam. À evocação da humildade segue-se o amor de Cristo (70).


A mesma lição é ensinada a André. Barsanulfo perdoou os pecados de André e como este o agradecia, o Grande Ancião acrescentou: De boa vontade e cheio de ardor, eu me ofereço em sacrifício pelas suas almas. Deus que conhece nossos corações o sabe... Portanto, seja um humilde discípulo d’Aquele que se humilhou por você, discípulo obediente do Obediente, discípulo perseverante do Perseverante, discípulo paciente do Paciente, discípulo misericordioso do Misericordioso, carregando o fardo do próximo como ele mesmo carregou os seus, amando sinceramente os homens como ele próprio nos amou, seguindo-o em tudo...” (111).


A imitação de Cristo é o próprio modelo de humildade e de amor. Um solitário indaga: como adquirir a humildade perfeita (150)?


“O Senhor nos ensinou ao dizer: ‘Aprendam comigo que sou doce e humilde de coração e vocês encontrarão o repouso para suas almas.’ Assim, se você quiser adquirir a humildade perfeita, aprenda aquilo que ele suportou e suporte-o você também; em todas as coisas desdenhe sua própria vontade, pois ele disse de si mesmo: ‘Eu desci do céu para fazer não a minha vontade, mas a vontade de meu Pai que está nos céus.’ Esta é a humildade perfeita: suportar os ultrajes e as injúrias e tudo o que sofreu nosso Mestre Jesus” (150).


A medida desta prática de vida consiste precisamente em não se atribuir um valor em relação aos outros, vale dizer em relação à auto-estima dos outros. Este é o sentido da apsèphiston: não procurar o valor do outro, ou seja, não se comparar (94), acusar a si mesmo e nunca ao outro – eis a vitória (69) –, suportar a vergonha (96), recusar-se a acusar alguém por irritação ou rancor (68), não responsabilizar o próximo pela aflição que se sente (17). As recomendações adquirem matizes conforme os correspondentes, mas a raiz das propostas de Barsanulfo tocam sempre o amor e o esquecimento de si. E se às vezes atravessa uma nuança de desprezo por si mesmo, de vergonha de si e de acusação a si próprio, é sempre em referência Àquele que deu sua vida por nós e que nos convida, por nosso turno, a subir na cruz.


“Deus é amor”, diz Barsanulfo a Euthymo (71). E o Senhor, ao dar sua vida por nós, ensinou-nos esta lição: “Amem uns aos outros como eu os amei” e “assim todos reconhecerão que vocês são meus discípulos, se vocês amarem uns aos outros” (61). “Amemo-nos a fim de sermos amados”, declara ele a um outro irmão (196).


É este amor que chama Barsanulfo a se ligar aos seus discípulos, a não ser senão um com Euthymo, no amor de Cristo (64), a se ligar a Paulo: “Se tivéssemos este amor, nada nos separaria uns dos outros até a morte” (57). É isto que os Padres fizeram: aderir a Deus com um amor perfeito, e assim o Grande Ancião recomenda amar os irmãos de todo coração em um amor perfeito, como o próprio Seridos pratica. Dois níveis se distinguem no pensamento do mestre: o amor pede a correção; o amor pede que observemos os mandamentos.


A educação que o amor exige inscreve-se na linha direta do ensinamento da Epístola aos Hebreus: “Meu filho, não desdenhe o corretivo do Senhor e não se desencoraje quando ele o repreende...”. “Se alguém ama a quem o repreende, comenta Barsanulfo a João de Beersheba, este é sábio; mas se você ama alguém mas não faz o que ele lhe diz, isto é aversão!” (17). “É a direita do Senhor que nos concedeu a graça de caminharmos sobre as pegadas de nossos Padres no ensinamento, na conduta, na paciência, na caridade, na perseverança, nas perseguições, nos sofrimentos” (187).


A caridade reside na paciência, ela não fanfarroneia (20), não tomba jamais (99). Ela é cheia de humildade e do temor a Deus (32). Ela é como o teto do edifício (208). “Se vocês me amam, guardem meus mandamentos.” Estas palavras, repetidas a Paulo o solitário, o conduzirão ao amor perfeito (57). Este acolhe a doçura (71), a graça, a paz (99) e a felicidade (196). “A alma firme e ligada ao Senhor através de todas as coisas, vigilante na fé, alegre na esperança, exultante na , guardada na santa e consubstancial Trindade” (2). Consumida pelo fogo (18), “este fogo celeste que o mestre de todas as coisas veio trazer sobre a terra” (130), “você aspirará sempre, declara Barsanulfo a Teodoro, a se tornar companheiro de viagem, concidadão e co-herdeiro dos santos e a penetrar naquilo que Deus preparou para aqueles que o amam em Jesus Cristo nosso Senhor. Este é o lugar do repouso e do grande repouso.”


Outras expressões ressurgem: considerar-se como não mais que poeira e cinzas, considerar-se o último dentre todos. Assim é que a morte para si mesmo, vale dizer seguir a Cristo na cruz pela humildade, a obediência e a submissão, conduz o discípulo de Barsanulfo, no caso Euthymo (61), à caridade e ao amor.



A personalidade de Barsanulfo – Barsanulfo é um homem de Deus, um mestre espiritual fora do comum cuja personalidade não é fácil cercar. É um ser que sai dos caminhos batidos, que caminha pelos cumes, perdoando os pecados à distância, convidando seu discípulo à liberdade do Espírito. De um lado seu extremo isolamento faz com que alguns duvidem de sua existência (125), de outro, através de sua correspondência ele dá testemunho de um coração transbordante de comunhão. Ele toma em seu coração a vida dos que o consultam, carregando com eles o peso de suas existências com extrema generosidade. “De bom grado eu dou minha vida até a morte por você, meu irmão, escreve ele a Paulo o Eremita, lembrando-o das palavras de Ruth na Bíblia: “Que não me aconteça separar-me de você. Só a morte me separará de você.” (57).


Na meditação sobre a letra eta, ele evoca a prece sacerdotal de Jesus no Evangelho de são João: “Que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti.[41]” Todas as passagens evocadas sublinham esta comunhão, mas nele existe uma autoridade de quem assenta-se com Cristo. “Que aquele que pensa haver já sido ofertado, examine a si mesmo... se ele morreu com Jesus, se está vivo e senta-se com ele.” Os termos gregos, com a repetição do mesmo prefixo syn-, reforçam a idéia de “morrer-com-ele” e de “sentar-se-com-ele” (137b). Estas palavras brotam de uma personalidade mergulhada no silêncio do deserto e que se levantará no fim dos tempos para dizer a Cristo: “Eis-me aqui, eu e aqueles que me foram dados.” Barsanulfo tem a convicção íntima de participar, com sua vida e suas orações, da salvação daqueles que lhe foram confiados.


Barsanulfo possui incontestavelmente uma grande autoridade carismática. De onde vem ela? Pensamos não estar ser errado situá-lo, depois de Orígenes, Basílio e de certo modo Evagro, na linha da submissão à interpretação autorizada da Palavra de Deus. É uma primazia absoluta à qual Barsanulfo dedica uma total obediência. Existe uma relação de dependência muito forte entre as sagradas Escrituras e aquilo que ele escreve aos que o consultam. A Palavra de Deus transmitida apresenta-se sempre como a suprema referência diante da qual cada um deve se submeter. A autoridade do Grande Ancião decorre simplesmente deste primado atribuído à palavra de Deus. Seu modo de citar os versículos da Escritura e de comentá-los o ilustra profusamente. Mais do que um exegeta, ele é um mestre da vida que chama para a conversão e para a prática.


Cada conselho seu aos solitários encontra seu argumento num texto escriturário e Barsanulfo é, em definitivo, aquele que guia, que conduz seus discípulos para a salvação discernindo a vontade de Deus na vida de seus correspondentes por intermédio da fidelidade a Jesus Cristo presente em todas as Escrituras.


Este enorme prestígio seu é provavelmente devido a uma experiência de vida que amadureceu Barsanulfo, que o fez morrer para renascer e à qual ele se dificilmente se remete (13). Em muitas ocasiões, notamos que as palavras ditadas ao abade Seridos são como se lhe fossem arrancadas contra sua vontade (40), e que elas são cheias de um sopro vindo de outro lugar, do Espírito Santo (41).


Outro traço dessa formação, é que ela é profundamente humana e livre. Um discípulo pretende seguir uma regra de vida? A resposta a João de Beersheba é sem ambigüidade: “Não fixe para si nenhuma regra!”, para que uma necessidade superior não o leve a transgredir o princípio que lhe foi imposto (21, 23, 25). As exigências de Barsanulfo encerram uma profunda liberdade orientada para Deus e que respeita o ritmo de cada um.


Sua conivência com o essencial no despojamento lhe permite também ver o que o olho não vê e ouvir o que o ouvido não escuta. É uma expressão à qual ele retorna muitas vezes e a muitos correspondentes ele testemunha possuir um dom visionário. Barsanulfo era conhecido por suas predições. A João de Beersheba ele declara logo de saída que há dois anos Deus lhe revelara que ele viria habitar no mosteiro e que muitos irmãos se reuniriam ao seu redor, de João o Profeta e do abade Seridos (1). Normalmente, o Sábio de Gaza revela progressivamente aos que o consultam coisas ocultas da vida (77, 154, 196, 203).


Se Barsanulfo é capaz de discernir as coisas ocultas e se torna de certa forma o primeiro de uma corrente, é porque ele segue os passos do Pastor, do grande Piloto, do Guia. A meditação eta, sozinha, expressa o que Barsanulfo entende quando fala do guia. A esta visão do Senhor Jesus que tem o Nome que está acima de todos os nomes, liga-se um outro carisma do Grande Ancião, o de perdoar os pecados. É preciso aqui reler a bela missiva a André, que recebe o perdão por seus pecados desde o nascimento até “agora” (107). Ele também associa João de Beersheba aos seus carismas, dentre os quais o de perdoar os pecados (10).


Tais dons, a profecia e o perdão dos pecados, um enorme entusiasmo em sua relação com Aquele a quem ele chama de Humilde, Obediente, Perseverante, Paciente, Misericordioso (111) não é possível senão por um modo de agir que renuncia a si até a morte para ser seu discípulo... A renúncia a si mesmo se apresenta como o elemento essencial do pertencimento a Jesus e nos introduz agora a considerar o combate contra os demônios.



O combate contra os demônios – O príncipe dos demônios é o Diabo, ou Satanás segundo a tradição hebraica. Ele é o que divide, o inimigo do bem e do belo, o mau, o sopro múltiplo que corresponde a cada uma das tentações. As imagens que o caracterizam vêm da Escritura e evocam animais selvagens que habitam o deserto, como o leão que ruge ou o lobo que persegue o rebanho de ovelhas. Cabe assim proteger-se contra sua “energia” na qual dominam a inveja e o ciúme que engendram a falta de fé. Sua ação é caracterizada pelo frio, ao qual se opõe a ação do Senhor, fogo que aquece e abrasa o coração e os rins. Esses maus espíritos são capazes de povoar os sonhos, de metamorfosear as coisas ao seu grado. Assim, o monge deve conhecer suas táticas e discernir seus pensamentos.


Por meio de seu refúgio no deserto (e sob este aspecto a correspondência de Barsanulfo a João de Beersheba é exemplar), o monge colocou uma distância entre si e as realidades do mundo, fonte de agitação e perturbação. Ele está livre das tentações referentes à vista, ao ouvido, à palavra. O campo de combate desloca-se para um espaço mais interior e imaterial, o coração, memória viva do monge e aonde residem seus pensamentos.


O primeiro trabalho do solitário consiste assim em discernir os pensamentos que provêm dos anjos, do homem ou do demônio. Na correspondência, os pensamentos são muitas vezes entendidos em um sentido pejorativo. Pouco a pouco, são identificados, comparados, sistematizados. Evagro os sintetiza em oito pensamentos principais. São os vícios ou as paixões que correspondem cada qual a um daimon, um espírito especializado.


Barsanulfo menciona explicitamente os oito pensamentos codificados por Evagro, transmitidos ao Ocidente por Cassiano e inscritos de modo definitivo na tradição por são Gregório o Grande. Em Barsanulfo, a alusão às “nações” é extraída de Orígenes em suas Homílias sobre Josué, “assimilando este a Jesus e os povos de Canaã que é preciso exterminar aos vícios que o próprio Jesus destrói em nós”. Em número de sete segundo o Deuteronômio (VII, 1), estas “nações”, que são os vícios, são em número infinito para Orígenes, são oito para Evagro e Cassiano, e também para Barsanulfo.


O Grande Ancião parece assim ligar-se a Orígenes e a Evagro, porque ele próprio cita as “sete nações” do Deuteronômio e prolonga por sua conta a lista das paixões na meditação sobre a letra eta:  gula, luxúria, avareza, tristeza, acídia, cólera, ódio, maledicência, rancor, vanglória e orgulho. “Ou simplesmente, prossegue ele, atirando seja qual for a semente de Amaleque na terra espiritual das promessas. O sinal de que o  homem foi salvo é, portanto, o fato de ter sido purificado de tudo isso e de cantar com os anjos de Deus.” Mais uma vez, o Sábio de Gaza revela sua liberdade, escapando aos estereótipos de sua época.



Acídia e paciência – Não cabe aqui desenvolver todo o combate que seus correspondentes desenvolvem contra cada uma das paixões. Mas um exemplo nos permitirá captar uma noção importante que poderia ser desenvolvida de muitas maneiras. Na carta 13, João de Beersheba, responsável por uma comunidade cenobítica, constrói um edifício importante em seu mosteiro. Alguns irmãos modificaram os planos previstos e João ficou aflito e desencorajado.


Barsanulfo coloca-se então em guarda contra o “sopro (pneuma) da acídia, pois ele engendra todos os males e diversas inquietações”, e ele lhe recomenda “a paciência (makrothymia) que é geradora de todas as benesses”. A acídia e a makrothymia apresentam-se assim como duas noções chave. Estas duas noções estão incluídas na presença do Espírito Santo que convida Barsanulfo a escrever por Jesus Cristo nosso Senhor citado no final da carta. “Corra com firmeza e vigor, conclui Barsanulfo, lembrando-se de minhas palavras, ou melhor, das palavras do Senhor.”


O demônio da acídia surgiu porque João de Beersheba teve o coração partido. Mas para Barsanulfo, tudo contribui para a salvação da alma de seu discípulo. “Tudo é feito para o proveito e a correção da alma e da consciência do homem interior, para a repressão e a correção do corpo e para seu coração partido.” Barsanulfo faz excepcionalmente alusão às provações que ele próprio suportou: “Se eu lhe contar as provações que eu suportei, seus ouvidos não suportariam e sem dúvida não suportariam também nenhum dos de nossa época.” Em outras cartas, a noção de acídia, em Barsanulfo, aproxima-se da indolência (e da negligência), muitas vezes ligada a sonhos maus e fantasmas. A acídia, em Barsanulfo, toca o espírito e o coração que se enfraquece de diversas formas. Ele quase não fala da falta de energia, mais conhecida de João o Profeta.


Ao contrário da acídia, a paciência é geradora de todos os bens. É preciso suportar as provações para ser salvo. Esta é uma motivação para Barsanulfo, assim como para seus predecessores, os monges do Egito: “Somente aquele que for testado e perseverar até o fim será salvo”. A expressão aparece em duas citações bíblicas, em 2 Timóteo IV, 2, retomada muitas vezes, e também em Hebreus XI, 5.


A makrothymia, valor importante, inscreve-se em uma realidade mais ampla: a hypomonè. Esta palavra significa literalmente “permanecer na prova, agüentar bem”. A expressão aparece no testemunho do próprio Barsanulfo que “suportou as provas” que ouvido nenhum suportaria ouvir (13). Onipresente na correspondência, a hypomenè abarca três aspectos: a paciência, o fato de agüentar as provas e a perseverança. Estas três realidades aparecem ao longo da vida do solitário que deve perseverar até o fim para ser salvo. As presenças do Espírito Santo, do Cristo Pastor de ovelhas, de Barsanulfo, de Seridos, estão lá para ajudar João de Beersheba a viver em uma caridade perfeita (13).


A um irmão que se afligia por sentir a proximidade da morte do Grande Ancião, este retorna sobre a importância do combate espiritual. “...É direito do Senhor exercer seu poder, dar-nos a força e a graça de caminhar sobre as pegadas de nossos Pais” no ensinamento, na conduta, na paciência, na caridade, na perseverança, nas perseguições e nos sofrimentos, em tudo o que nos vem do Inimigo de modo sensível ou espiritual. E de comentar a citação de João VIII, 39. Nós devemos produzir as obras de Abrahão. “Se nós não compartilharmos seus sofrimentos na medida de nossa fraqueza, como seremos glorificados no último dia? Se não morrermos com ele rejeitando...” Barsanulfo coloca então seu discípulo em guarda contra a preguiça, a indolência, a irresponsabilidade e a falta de fé. “Aquele que perseverar até o final será salvo.” Toda a carta merece ser relida como as ênfases passionais da conclusão evocando a beatitude da alma que experimenta essas realidades, a alegria, a felicidade e a justa retribuição para glória do Filho bendito, para glória do Espírito Santo bendito e santo (187).



Jesus, Senhor e Cristo – Jesus, Senhor e Cristo, Mestre, Piloto, Pastor, Cordeiro sem mácula, Vítima imortal, está no centro de toda correspondência de Barsanulfo. O Enviado do Pai misericordioso vem salvar e curar. Seu Nome, invocado sem cessar pelos orantes, afasta os demônios. Ele introduz os anacoretas no “porto do repouso”, na ausência de preocupações, na quietude e na alegria. Ao final da história humana, ele remeterá o Reino a seu Pai em presença dos santos e daqueles que lhes foram confiados.


Jesus é, segundo a Epístola aos Hebreus[42], o iniciador e o consumador de nossa salvação e ele nos mostra a vida da perseverança e da salvação. Barsanulfo contempla Jesus no Gethsemani e sobre a cruz; ele convida os que o consultam a seguir a Cristo carregando-lhe a cruz. Pois os sofrimentos do tempo presente são pouca coisa em comparação com a glória que virá. E se o solitário aceita morrer para si mesmo, nada o poderá separar do Amor de Cristo. Desta maneira, o solitário entra por sua vez no mistério da cruz, lugar de todo discernimento e de toda cura.


Por esta via estreita, com a fé em Cristo pregada ao corpo, o solitário descobre, no mais fundo de si mesmo, sob a conduta dos seus mestres, as duas faces do combate: a vertente da luta, do luto, das lágrimas misturadas às súplicas e pedidos de intercessão; e a vertente do repouso – diríamos hoje, da iluminação – na qual dominam a serenidade, a doçura, a exultação, a alegria e a paz. O papel dos Padres de Gaza consiste em acompanhar seu discípulo colocando o Senhor Jesus, Mestre da vida, no centro da sua vida.


A um anacoreta molestado por assaltantes e que contou seus temores ao Grande Ancião, Barsanulfo replica que não foi sem a permissão de Deus que as tentações aconteceram. Elas acontecem para testar a fé. “Os assaltantes são mais numerosos do que os carros e os exércitos do faraó? (...) Tomemos o bastão da cruz com o qual o mar foi dividido, o Faraó espiritual afogado, os bêbados curados, os mortos ressuscitados; é a cruz na qual glorificou-se o Apóstolo e pela qual fomos resgatados da traição, permanecendo o mais próximos possível daquele que foi crucificado por nós. É por meio dela que ele próprio nos apascenta, nós suas ovelhas e é por meio dela que ele afasta todos os lobos sanguinários” (182).


Os monges de Gaza dão prosseguimento à tradição dos anacoretas do Egito, segundo a qual que quer ser salvo deve suportar injúrias, reprimendas, ultrajes e ofensas “para libertar seus sentidos e alcançar a solidão perfeita”. “Ó irmão bem-amado, pergunta o Grande Ancião, o Senhor suportou a cruz e você, não se regozija nas atribulações cuja aceitação paciente o conduzirá ao reino dos céus?” (186). De seu lado, João de Beersheba aprende a suportar a prova e a subir na cruz de Cristo; assim ele recebe esta promessa: “Você entrará no porto do repouso, você viverá na quietude em um grande desligamento de todas as preocupações, como a alma firme e agarrada ao Senhor através de todas as coisas” (2). O tema é retomado sem cessar: o monge deve “subir na cruz”, servir-se dela como de um bastão, de uma âncora, para imitar “aquele que nos mostrou o caminho da perseverança e da salvação”.


A prece é um meio privilegiado de penetrar na vontade de Deus e de caminhar sobre a via da perseverança. Ao lado da recitação do Salmos e da ruminação da Palavra de Deus, o monge de Gaza pratica a oração a Jesus. Esta prática, nascida no Egito, prossegue em Gaza e Doroteu a ensinará a seu discípulo Dositeu. Um solitário questiona Barsanulfo a respeito da célebre oração de são Macário de Sceta. O Sábio responde que as palavras do Pai Nosso: “Não nos deixes cair em tentação, mas livrai-nos do Mal”, equivalem à oração de Macário. “Tende piedade de nós” e “Vem em meu auxílio”. Euthymo, rezando estas palavras, retoma a cena do Evangelho do cego Timeu, sentado à beira do caminho implorando: “Filho de Davi, tem piedade de mim”; e também: “Mestre, que eu veja.”



A prece de Jesus – É a cruz de Cristo, celebrada no Nome que está acima de todos os nomes, que “destruiu a rede do Inimigo e nos libertou; nosso socorro está no Senhor que fez o céu e a terra.” O contexto é o da misericórdia divina que cura nossas enfermidades por meio do Nome de Jesus. O Grande Ancião não suporta esconder as maravilhas de Deus testemunhadas nos Atos dos Apóstolos em que o Nome de Jesus levanta o paralítico, ressuscita Tabitha que estava morta, expulsa os demônios, cura os enfermos. “Também nós devemos, prossegue Barsanulfo, implorar tremendo de alegria a fim de obter a purificação total de todas as paixões em seu Nome glorioso e terrível.”


A conclusão desta carta nos faz penetrar na face oculta e gloriosa destas vidas fundadas na renúncia. “Quantas vozes, línguas, bocas, corações, pensamentos, poderão lhe retribuir convenientemente a glória? E eu penso que isto não se encontrará sequer entre os espíritos, pois a divindade é incompreensível. A ela a glória, o poder e a potência pelos séculos dos séculos. Amém.”


O solitário, desembaraçando-se de todas as preocupações e entrando no silêncio de seu retiro, atinge a quietude perfeita. Ele descobre o dom de Cristo cujas vias são impenetráveis. “Eu peço a Deus noite e dia, escreve Barsanulfo a João de Beersheba, a fim de que, aonde vivermos nós, esteja você em um mesmo coração conosco na inefável alegria dos santos, na luz eterna, para que você encontre a sua parte naquilo que foi prometido aos santos, aquilo que o olho não viu, que o ouvido não escutou, que o coração do homem sequer suspeitou, aquilo que Deus preparou para os que o amam” (22). A prece contínua do monge lhe entreabre o universo da comunhão dos santos; ela lhe permite entrever o que permanece escondido e que Deus preparou para aqueles que o amam.



A doçura de Cristo – A docilidade encontra sua fonte na humildade de Jesus Cristo que nos disse: “Aprendam comigo que sou doce e humilde de coração”; ela se expande em serenidade e alegria. Barsanulfo dá este bom preceito a João de Beersheba: “Faça repousa a doçura em seu coração, lembrando-se de Cristo, Cordeiro sem malícia, e de tudo o que ele suportou, ele que era inocente, ultrajes, golpes e todo o resto” (20). O Grande Ancião era conhecido por sua serenidade, como atesta um anacoreta egípcio que foi habitar em Gaza: “Se isto for possível, torne-me digno de sua doçura  e tenha piedade de minha alma tão miserável” (55). O modelo é Cristo e sua doçura nos é dada para salvar os homens e não ferir o próximo (26). Ela é ligada à humildade e à perseverança (91), à submissão e à resistência (195), à ausência de malícia (22). Moisés é conhecido por sua docilidade (194). Esta abre as portas ao amor, à paz e à alegria.



O ingresso no repouso e na felicidade – A imagem do porto, refúgio dos navegantes, é freqüente na correspondência. Ao entrar na solidão, João de Beersheba deixa as atribulações do mundo e entra no porto da quietude aonde ele encontra o repouso e a paz (9). A expressão é inspirada no Salmo CVI, 30, em que o Senhor conduz os navegantes “até o porto de sua vontade”.


A imagem exprime a paz interior que nasce da ausência de preocupações no silêncio do deserto. Esta última noção, mais complexa do que parece, retoma, de outro modo, o que foi dito a respeito da equanimidade: a paz verdadeira consiste em guardar um coração sempre igual tanto nas provas como nas honras. Este refúgio de paz e felicidade, é o próprio Cristo. A própria pessoa de Barsanulfo é um refúgio e um porto. A imagem utilizada surge por si só para esses solitários que habitavam não longe da costa palestina e que viam com admiração a calma do porto, ao abrigo dos ventos de mar alto.


A paz dos monges de Gaza é cheia da luz e da alegria do Espírito Santo. O Grande Ancião multiplica então as expressões de beatitude e de felicidade para aqueles que, no despertar de seu ser, acedem a tamanho amor e tal perfeição. Seu entusiasmo e sua alegria transbordam: “Bem-aventurada a alma que foi iluminada para compreender isto! Bem-aventurada a alma atingida por um tal amor! Pois a felicidade a aguarda com alegria e a justa retribuição nos céus, na luz eterna, em presença dos anjos, dos arcanjos e de todas as potências celestes para a glória do Filho bendito, para a glória do Espírito bendito e santo. Amém. Comporte-se bem, irmão” (187).



Ação de graças e Doxologia – O solitário dá graça a Deus por todas as coisas. Ele bendiz a Deus nas alegrias da existência. Ele bendiz durante as provações que atravessa. Ele aprende a paciência e a perseverança. “Aquele que perseverar até o fim, este será salvo”, gosta de repetir o Grande Ancião. E esta tenacidade conduz o discípulo a uma felicidade indizível. Esta transborda em exultação; ela irradia uma luminosidade secreta e um fogo interior.


O homem é regenerado pela felicidade de Cristo, pela alegria do Espírito Santo e pela alegria do Pai. Tradicionalmente, Barsanulfo termina suas missivas com uma Doxologia, que se endereça seja ao próprio Cristo, seja a Cristo e ao Espírito, seja à Trindade. A compaixão divina permanece sendo um traço dominante nesta correspondência habitada pela presença do Pai, do Filho e do Espírito Santo.


No inicio deste estudo, nós sublinhamos o quanto a palavra de Barsanulfo é sustentada e tensionada pelo desejo de salvação, ou seja pelo desejo em viver na comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Numerosas cartas terminam com uma Doxologia e freqüentemente, o santo Ancião apresenta seus discípulos “à santa, adorável, consubstancial e vivificante Trindade sem princípio” (117).


Habitado pelas palavras de são João após a ceia, o monge de Gaza se deixa guiar pelo Espírito Santo. Este o conduz na plena verdade e ilumina seu coração com uma alegria inefável. A um monge que interrogou Barsanulfo sobre a quietude perfeita para si mesmo e seus companheiros, este declara em duas cartas sucessivas que merecem ser lidas por inteiro: “Que o senhor Jesus, o Filho de Deus bendito e altíssimo, os fortifique e os torne capazes de receber seu Espírito Santo, a fim de que ele venha e que por sua benfazeja presença, ele os ensine sobre todas as coisas, ilumine seus corações e os conduza à plena verdade[43]” (207)


“Se você dispõe assim de sua casa de tal modo que não haja nela nada de desagradável, ele virá com o Pai bendito e o Espírito Santo e fará sua morada com você[44]; ele o ensinará o que é a quietude e iluminará seu coração com uma alegria inefável” (208).




Tradução do grego


L. REGNAULT


Introdução, texto crítico e notas


François NEYT e Paula de ANGELIS-NOAH




[1]                Coleção de doze códices de papiro com tampas de couro, descobertos casualmente em 1945, no alto Egito, junto à antiga aldeia de Quenoboskion, a uns dez quilômetros da moderna cidade de Nag Harmmadi. Foram confeccionados por volta do ano de 330 e enterrados em fins do século IV ou princípios do V. Contêm umas cinqüenta obras escritas em copta – língua egípcia falada pelos cristãos do Egito e escrita com caracteres gregos – que são traduções do grego, às vezes não muito confiáveis. Do ponto de vista literário, nesses códices estão representados os mais diferentes gêneros: tratados teológicos e filosóficos, apocalipses, evangelhos, orações, atos dos apóstolos, cartas, etc. Do ponto de vista das doutrinas contidas, os códices contêm em geral obras gnósticas cristãs, embora em algumas, como o “Apócrifo de João” (uma das mais importantes, pois encontra-se em quatro códices), os traços cristãos pareçam secundários diante do mito gnóstico que constitui o seu núcleo. Nos códices também existem obras gnósticas não-cristãs, que recolhem uma gnose greco-pagã, desenvolvida em torno da figura de Hermes Trismegisto, considerado o grande revelador do conhecimento. Esse tipo de gnose já era parcialmente conhecido antes dos descobrimentos. No Códice VI aparece inclusive um fragmento da “República” de Platão. (Kuntzmann, Raymond e Dubois, Jean-Daniel, Nag Hammadi. Evangelio de Tomás. Textos gnósticos de los orígenes del cristianismo. Verbo Divino, Estella, 1998)
[2]                São Pacômio (c. 292-348), também conhecido como Abba Pacômio, é geralmente reconhecido como o fundador do monasticismo cenobita
[3]              Dinâmica por meio da qual a mensagem evangélica e a doutrina cristã entram nas línguas e culturas locais, inculturam-se, para melhor atingir os destinatários da doutrina.
[4]              Sozomeno passou alguns anos junto aos monges de Gaza. Em sua obra, ele faz o elogio da vida monástica, e mostra conhecer bem a Hilario e seu discípulo Hesíquio. Ele afirma ter freqüentado desde jovem, homens da família de d'Alaphim, discípulos de Hilário e fundadores de mosteiros e igrejas na região de Gaza. São citados quatro irmãos: Salamanes, Phoreskon, Malachion e Crispion, que levavam a vida ascética em um mosteiro próximo de Betiléia, durante o reinado de Valens, co-imperador romano (364-378).
[5]                As datas possíveis de fundação dos mosteiros são as seguintes: Pharan, 330; Douka, 340; Caritão, 345; Theoctiste, 411; Marda, 422; Caphar Baricha, 423; Eutimo, 428; Calamon, 450; Choziba, 455; Gérasime, 455. (di Segni, Leah Capagnano – Cercare Dio nel deserto, Ed. Qiqajon, Bose, 1990)
[6]              Carta sinodial que Sofrônio, patriarca de Jerusalém endereçou em 634 a seu colega Sérgio de Constantinopla. De fato, devemos distinguir o discípulo de Barsanulfo de outro Doroteu, bispo dos Teodósios e dos Gaianitas ou Aphthartodocetes*, que era herético. Quanto a Barsanulfo, Timóteo deo Constantinopla assinala um Barsanulfo bispo e fundador de uma seita monofisita.
                * Aphthartodocetes: doutrina que pregava a incorruptibilidade (aphthartos) do corpo de Cristo, formulada por Juliano de Halicarnassos no início do século VI.
[7]              S. Vailhé – Saint Barsanulphe in Échos d’Orient, 8 (1905), pg. 16.
[8]              O manuscrito “P” (Patmos 266), publicado em Kiev em 1895.
[9]              Mnèmè tou hosiou Barsanophiou” (Em memória de são Barsanulfo).
[10]                Le Synaxaire: vies des saints de lÉglise orthodoxe, adaptação francesa pelo hieromonge Macário de Simonos-Petras, Ed. To Perivoli tis Panaghias, Tessalônica, 1990. Neste Sinaxário encontramos alguns elementos biográficos sobre a primeira formação monástica de Barsanulfo: “Passando um dia perto de um hipódromo onde se desenrolava uma destas vãs competições que desencadeiam as paixões dos espectadores, ele disse a si mesmo: ‘Veja como os filhos do diabo lutam com zelo; com muito mais razão devemos nós correr, nós os filhos do Reino, para conquistar a vitória’!” (pg. 61).
[11]             Existiam, é claro, outros anciãos na região de Thavatha. Na Correspondência, João o Profeta é apresentado como o outro dos dois, ao lado de Barsanulfo.
[12]             Cartas 23, 71,196 e 208.
[13]             Cartas 59 a 64, por exemplo.
[14]             Carta 137b.
[15]             Como a expressão skôlèka ozonta – verme fedorento – na carta 125, l. 45.
[16]             Carta 600: mataiologiai – ninharias; borboros – lodaçal.
[17]             Cartas 790 a 792, 801, 823 a 830.
[18]             Cartas 214 a 223, por exemplo.
[19]             Por exemplo, nas cartas 83 a 85, 108, 128, 129 e 131.
[20]             H.I. Marrou, Histoire de l'Éducation dans l'antiquité, Paris 1966.
*              As cifras entre parêntesis conduzem à carta correspondente. Barsanulfo decidiu sempre dirigir-se aos que o consultavam por intermédio do abade Seridos.
[21]             “Ele falou, levantando um vento impetuoso, que elevou as ondas do mar. Eles subiam até o céu e baixavam até o abismo, a vida deles se agitava na desgraça. Rodavam, balançando como bêbados, e de nada adiantou a perícia deles. Na sua aflição, clamaram para Javé, e ele os libertou de suas angústias. Ele transformou a tempestade em leve brisa e as ondas emudeceram. Ficaram alegres com a bonança, e ele os guiou ao porto desejado.”
[22]             “Lembre-se, porém, de todo o caminho que Javé seu Deus fez você percorrer durante quarenta anos no deserto, a fim de humilhá-lo e o colocar à prova, para conhecer suas intenções: será que você iria observar os mandamentos dele ou não? Ele humilhou você, fez você sentir fome e o alimentou com o maná, que nem você nem seus antepassados conheciam, tudo para mostrar a você que o homem não vive só de pão, mas que o homem vive de tudo aquilo que sai da boca de Javé.”
[23]               “Então Jó se levantou, rasgou a roupa, rapou a cabeça, caiu por terra, e disse: ‘Nu eu saí do ventre de minha mãe, e nu para ele voltarei. Javé me deu tudo e Javé tudo me tirou. Bendito seja o nome de Javé!’ E, apesar de tudo, Jó não pecou e não acusou Deus de ter feito alguma coisa injusta.”
[24]             “Corra, meu povo, entre no seu quarto, feche a porta por dentro e fique escondido por um pouco, até passar esta cólera. Porque Javé está saindo de sua casa para castigar os crimes dos habitantes da terra. A terra devolverá o sangue derramado, não poderá mais esconder suas vítimas.”
[25]             “Ao contrário, aquele que se une ao Senhor, forma com ele um só espírito. Fujam da imoralidade. Qualquer outro pecado que o homem comete, é exterior ao seu corpo; mas quem se entrega à imoralidade peca contra o seu próprio corpo. Ou vocês não sabem que o seu corpo é templo do Espírito Santo, que está em vocês e lhes foi dado por Deus? Vocês já não pertencem a si mesmos. Alguém pagou alto preço pelo resgate de vocês. Portanto, glorifiquem a Deus no corpo de vocês.”
[26]             “Estejam atentos para a maneira como vocês vivem: não vivam como tolos, mas como homens sensatos, aproveitando o tempo presente, porque os dias são maus.”
[27]               “Jesus disse a outro: ‘Siga-me.’ Esse respondeu: ‘Deixa primeiro que eu vá sepultar meu pai.’ Jesus respondeu: ‘Deixe que os mortos sepultem seus próprios mortos; mas você, vá anunciar o Reino de Deus.’ Outro ainda lhe disse: ‘Eu te seguirei, Senhor, mas deixa primeiro que eu vá me despedir do pessoal de minha casa.’ Mas Jesus lhe respondeu: ‘Quem põe a mão no arado e olha para trás, não serve para o Reino de Deus’.”
[28]               Cf. Hebreus II, 13.
[29]             Lucas XV, 23.
[30]             Orígenes, Homilias sobre o Êxodo.
[31]               Numa carta a um Padre, João o Profeta retoma a sentença bem conhecida dos Padres do Egito: “Se você quer saber com quem está tratando, se amigo ou inimigo, faça uma prece e interrogue-o: você é dos nossos ou dos inimigos?, e ele lhe dirá a verdade” (166). “Interrogar é também conhecer o pensamento que vem de Deus, o que é natural, ou o que vem dos demônios” (124; 811)
[32]               Deuteronômio IV, 1.
[33]               A idéia da conversão cotidiana é central para Arsênio. Ela é retomada explicitamente por Barsanulfo na carta 126 e numa carta endereçada a Doroteu (256), que por sua vez aplicará este ensinamento nas suas Didascalias.
[34]               Na carta 57, o objetivo é chegar ao amor perfeito. Na Vida de Antônio, o ideal ascético tem raízes neste texto evangélico: “Não sofram pelo amanhã” (Mateus VI, 34). Na mesma Vida, é preciso “manter-se no dia de hoje diante de Deus”.
[35]               A mesma coisa em João o Profeta: “Você me força a falar de coisas que me ultrapassam” (153). De Barsanulfo: “Como vocês querem ouvir minhas palavras para regozijarem-se com elas, são vocês que me forçam a falar, a fim de que se cumpra em mim o que está escrito: ‘Eu me tornei insensato, foram vocês que me obrigaram’.” (2 Coríntios XII, 11). Esta última passagem deixa transparecer as razões bíblicas que explicam a reticência do Ancião em falar.
[36]               Barsanulfo diz a João de Beersheba que não se preocupe sobre o que dizer e como dizer, pois Cristo disse: “É o Espírito do Pai que falará por vocês” (Mateus X, 20)
[37]               Esta expressão, sob diversas formas, aparece 77 vezes na primeira parte da correspondência.
[38]                “Ele tinha a condição divina, mas não se apegou a sua igualdade com Deus. Pelo contrário, esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se semelhante aos homens. Assim, apresentando-se como simples homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” (Filipenses II, 6-8)
[39]               Na meditação sobre a letra êta, “o guia o conduz para que você suporte as injúrias e afrontas que lhe são feitas; não busque elogios e vanglória” (137b)
[40]                     A carta 68 reflete com precisão as contradições do anacoreta que vai conversar com outros por amor e com alegria, e mais adiante “porque não prestamos atenção para não afligir ninguém, seja em palavras ou em atos, a fim de que Deus esteja conosco em tudo?” E na mesma carta: “mantenha-se interiormente como se tivesse morrido para o mundo”, “acabe com esta mania de se justificar”, “condene a si próprio”. A carta 69 vai ainda mais longe. Sobre a cruz de Cristo, ver a carta 185.
[41]               João XVII, 21.
[42]               Hebreus II, 10.
[43]             João XVI, 13.
[44]             João XIV, 23.