Anônimo
RELATOS
DE UM
PEREGRINO RUSSO
Tradução para o
francês
Jean
Laloy
Tradução
Tito Kehl
M M I I I
A todos os mestres,
para retribuir e para transmitir.
para retribuir e para transmitir.
INTRODUÇÃO
Os Relatos
de um peregrino russo apareceram pela primeira vez em Kazan por volta de
1870. Esta primeira edição era, ao que parece, incompleta e algo incerta. Uma
versão correta dos Relatos foi publicada
em 1881, também em Kazan, e reeditada em 1884. Não houve outra tiragem na
Rússia até os eventos de 1917. Depois da revolução, os Relatos foram reimpressos em Paris em 1930, graças aos cuidados
do professor Vycheslatsev. Uma primeira tradução francesa foi publicada na
revista Irénikon, editada pela abadia
beneditina de Chèvetogne, na Bélgica.
O autor dos relatos é desconhecido.
De acordo com o prefácio da edição de 1881, o padre Paisius, abade do mosteiro
de São Miguel Arcanjo de Tcherémisses, perto de Kazam, copiou o texto de um
monge russo deAthos, cujo nome também é desconhecido. Segundo outras
indicações, o manuscrito dos Relatos estaria, por volta de 1860, nas mãos de
uma religiosa dirigida pelo estaroste Ambroise, do mosteiro de Optina, dentre
cujos papéis outros três relatos, de estilo menos puro, foram encontrados e
publicados em 1911. O autor seria um “cidadão da província de Orel”, e podemos
pensar num certo Nemytov que vinha às vezes a Optina conversar com o padre
Macário, predecessor de Ambroise. Segundo as mesmas indicações, o bispo Teófano
o Recluso escreveu em uma de suas cartas que ele “corrigiu e completou” a
primeira edição dos Relatos. De fato, a
edição de 1881 intitula-se “edição revisada e completada”.
Se examinarmos o texto em si,
percebemos que ele está organizado segundo um plano didático que revela a
intervenção de uma mão experiente. Podemos assim concluir que os Relatos têm
uma dupla origem. Lembranças, cuja autenticidade parece certa, foram contadas
ou redigidas por um ou mais peregrinos. Um religioso deu forma a estes relatos
para que eles servissem a um ensinamento espiritual. Este religioso pertenceria
ao meio de Optina, a solidão que buscaram Gogol, Ivan Kireevski, Dostoievski,
Vladimir Soloviev, Leon Tolstoi e muitos outros.
Os Relatos
de um peregrino estão ligados assim ao grande movimento literário do
século XIX. No tumulto de escritos de todos os gêneros em que se entrechocavam
as tendências extremas do caráter russo, faltava esta nota cristalina que foi
sem dúvida sua tônica secreta.
***
O peregrino faz o leitor penetrar no
coração da vida russa, logo após a guerra da Criméia e antes da abolição da
servidão, ou seja entre 1856 e 1861. Vemos passar os personagens do romance
russo, o príncipe ansioso por expiar sua vida dissipada, o mestre dos correios
bêbado e polemista, o escrivão descrente e liberal. Os condenados seguem suas
etapas para a Sibéria, os correios imperiais esgotam seus cavalos na estepe
infindável, os desertores rondam nas florestas. Nobres, plebeus, funcionários,
membros de seitas, reitores e padres de vilas, toda esta antiga Rússia terrena
ressuscita com seus defeitos, dos quais o menor não é a bebedeira, e suas
qualidades, das quais a mais bela é a caridade, o amor ao próximo por amor a
Deus. Na paisagem, a terra russa, planície imensa aonde o olhar se perde,
florestas desertas, albergues à margem dos caminhos, igrejas de cores vivas com
seus sinos cintilantes.
Para se guiar, o peregrino não possui
mais do que dois livros, a Bíblia e uma coletânea de textos patrísticos, a Filocalia. Apenas este nome permite definir a
escola à qual pertence. Russo do século XIX, o peregrino inspira-se em uma das
mais veneráveis tradições do Oriente cristão, a tradição hesiquiasta.[1]
O hesiquiasmo remonta aos primeiros
séculos cristãos. Ele tem sua origem no monte Sinai e no deserto do Egito. Na
Igreja do Oriente, ele surge como a corrente mística por oposição à tradição
especificamente ascética nascida de são Basílio.
Inspirados em Orígenes, Evagro e
Gregório de Nice, as escolas místicas do Oriente cristão estabelecem como fim
para o homem a deificação. Esta é frequentemente compreendida como a
restauração da alma à sua semelhança divina. Deus criou o homem à sua imagem e
semelhança, ensina o Gênesis (I, 26). A natureza intelectual e moral do homem é
feita à imagem de Deus. Ela se torna semelhante a ele quando, por sua caridade,
Deus vem habitar a alma humana, elevando-a assim acima de toda a Criação.
Libertado das paixões pela prática da virtude, o espírito contempla as razões
das coisas criadas e recebe a união com Deus no amor. Esta união pode se dar na
luz ou nas trevas, pode tomar uma forma mais intelectual ou mais afetiva. Ela
permanece sempre um mistério, porque ela une a alma criada ao Deus incriado e
transcendente. A teologia mística do Oriente cristão, assim como a do Ocidente
mas com acento diferente, situa-se fora da gnose, do panteísmo e do
naturalismo.
A tradição espiritual que, sob a
influência de grandes contemplativos como Diádoco de Foticéia (século V),
constitui-se pouco a pouco nos mosteiros do Oriente, atribui ao coração um
papel central na vida da oração. Considerado como a sede da inteligência e da
sabedoria, o coração deve voltar-se para Deus sem descanso. Ele será
fortalecido para esta finalidade por meio de uma oração constantemente
repetida: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de
mim. É a prece de Jesus,
mencionada desde o século VI por são
João Clímaco. Este método não conduz por si só ao recolhimento. Conjugado com a
prática das virtudes, iluminado pelo amor de Deus, ele favorece a oração. Mutatis mutandis, ela faz pensar na prática do
rosário no Ocidente.
A partir do século XI, desenha-se uma
evolução. Sob a influência indireta de um místico profundo, são Simeão o Novo
Teólogo, existe uma tendência a valorizar exageradamente a consciência
psicológica do sobrenatural. Ninguém será verdadeiramente cristão se não tiver
experimentado concretamente a graça. Os hesiquiastas repelem as visões
imaginárias mas, ao buscar a iluminação consciente, expõem-se a certos perigos.
Alguns, tomando o coração no sentido fisiológico, atribuem demasiada
importância aos meios “científicos” de alcançar a oração: posição do corpo,
papel do coração, controle da respiração, etc. Outros fazem da visão
experimental da luz o objetivo da oração. Este aspecto extremo do hesiquiasmo
suscita vivas controvérsias no século XIV nas quais brilha Gregório Palamas.
Entretanto a tradição autêntica continua a inspirar numerosos contemplativos.
O hesiquiasmo foi transmitido à
Rússia por Nilo de Sora (1435-1508), uma das mais importantes figuras do
monaquismo russo. Caído posteriormente no esquecimento, esta tradição foi
restaurada no final do século XVIII por um outro estaroste, Paisius
Velitchkovski, instalado na Moldávia. Os textos hesiquiastas que ele reuniu e
publicou em 1794 na Filocalia eslovena,
a Dobrotoljubié, guiaram os solitários e
os espirituais russos do século XIX. Estes retomam assim uma tradição bem
anterior à ruptura da unidade e da qual alguns aspectos foram bem conhecidos da
idade média latina.
***
Seja qual for a idéia que façamos do
hesiquiasmo enquanto tal, a experiência espiritual transmitida nos Relatos é a do peregrino russo. Esta
experiência é pura. Se por instantes o peregrino parece acreditar que apenas a
prática da prece de Jesus pode levar a conhecer “como o Senhor é bom”, seu amor
por Deus é grande demais para não ser de origem sobrenatural. O ascetismo de
sua vida é também um guardião para ele. Errando de lugar em lugar, sem posse
alguma, a prece perpétua é para ele o meio de fixar a atenção sobre o mistério
de Deus.
A fé do peregrino é alimentada pela
Escritura e a Tradição. Àqueles que o procuram, ele oferece conselhos práticos
e explicações doutrinais, não exortações retóricas. Conhecendo o homem à luz de
Deus, ele sabe seu lugar e seu papel no universo.
A moral do peregrino não é nem um
código nem uma higiene. Suas ações são guiadas pelo desejo da perfeição
espiritual. O ascetismo é a condição para a contemplação: ele não tem sentido
em si mesmo. A vida espiritual é uma: da fé provêm as obras; sem obras não há
fé. Caminhando pelo mundo da queda e do pecado, o peregrino faz seu caminho
para Jerusalém celeste, na qual ele penetrará no fim, inteiro, de corpo e alma.
Ele às vezes recebe graças que fazem pensar, em pleno século XIX, na
experiência franciscana.
“Árvores, plantas, pássaros, terra,
ar, luz, todos me diziam que existem para o homem, que eles testemunham o amor
de Deus pelo homem, tudo orava, tudo cantava glória a Deus.”
Esta luz não é um privilégio do
Oriente. É a luz do Evangelho. “Quem busca a felicidade, dizia recentemente um
religioso contemplativo do Ocidente, encontra a cruz. Quem busca a cruz,
encontra a felicidade.” Que a criação é boa e que depois da queda ela será
inteiramente tocada pela redenção, os grandes doutores medievais sabiam tão bem
quanto Gregório de Nice. Se a idade média ocidental se liga ao mistério da cruz
é porque as implicações maravilhosas da
Encarnação já haviam sido reveladas aos Padres. O Oriente e o Ocidente cristãos
não se opõem: eles se completam e aprofundam mutuamente.
***
Os Relatos
de um peregrino abrem assim grandes perspectivas, o que não lhes tira
nada do caráter próprio. O peregrino é o protótipo da piedade russa. Esta nunca
configurou uma escola de pensamento, uma doutrina específica. Tal como um ícone
de Novgorod de cores intensas e leves, ela renovou os modelos recebidos de
Bizâncio e deu às tradições do Oriente cristão um tom original e novo.
O sentido do mistério do homem, a
compaixão diante da dor e do pecado, a simplicidade do coração, a imitação
quase mímica da vida do Cristo e das verdades evangélicas, são os traços
constantes da piedade russa. Existe assim, na Rússia, um imenso potencial
religioso que só se expressa raramente. Até o século XIX, não existe uma
teologia russa. Tudo era traduzido do grego, ou acessoriamente do latim. A
síntese entre a corrente da piedade popular e o pensamento religioso só se
produziu em alguns poucos casos, dos quais o peregrino é um exemplo. Esta
ausência de unidade é o que à idéia religiosa russa seu caráter trágico. A
Igreja conhecia bem a ingerência do Estado. O cisma enfraqueceu-a. Nas
florestas aonde Nilo de Sora fixou sua ermida, acenderam-se no século XIX as
fogueiras dos Antigos Crentes. A luz
espiritual refugiou-se nos estarostes. Às vezes ela iluminou alguns fiéis, mas
sua irradiação não se estendeu muito longe. Os esforços dos intelectuais para
criar no século XIX uma doutrina religiosa russa permaneceram isolados. O mais
profundo dentre eles, Vladimir Soloviev, concebeu a idéia de uma nova Rússia que
reconciliasse em si o Oriente e o Ocidente, utilizando “a atividade da razão
para desenvolver e realizar plenamente os princípios da fé”. Mas esta visão não
chegou a tomar corpo.
Ao invés da razão auxiliar no
desenvolvimento dos princípios da fé, a Igreja, a fé e os fiéis foram
perseguidos em nome de uma certa idéia de razão. A pena se prolonga. Sua
própria duração mostra que a Igreja sobreviveu. A fonte da graça e dos
sacramentos não desapareceu. O espírito da oração subsiste. O encontro entre a
razão esclarecida e a fé depurada talvez esteja sendo preparado na obscuridade.
Jean Laloy
Paris, outubro de 1965
PRIMEIRO RELATO
Pela
graça de Deus sou homem e cristão, por ações grande pecador, por estado peregrino
sem abrigo, da mais baixa condição, sempre errando de lugar em lugar. Como
pertences, trago sobre os ombros um saco com pão seco, em meu bolso a santa
Bíblia, e isto é tudo. No vigésimo quarto domingo após a Trindade[2], eu entrei na igreja para ali rezar durante o
ofício; estava sendo lida a Epístola do Apóstolo aos Tessalonicenses, na
passagem[3] em que é dito: Orai sem cessar. Estas palavras penetraram profundamente em meu
espírito e eu me perguntei como é possível orar sem cessar quando cada um deve
ocupar-se de diversos trabalhos para manter sua própria vida. Eu procurei na
Bíblia e li com meus olhos exatamente o que eu havia escutado: é preciso
orar sem cessar[4],
rezar com o espírito em todas as ocasiões[5],
em todo lugar erguer as mãos suplicantes[6]. Eu refleti muito, mas não sabia o que decidir.
Que
fazer – pensei eu –, onde encontrar alguém que possa me explicar essas
palavras? Irei às igrejas nas quais pregam homens de renome, e talvez aí eu
encontre o que procuro. Assim, coloquei-me a caminho. Eu ouvi muitos e
excelentes sermões sobre a prece. Mas eram todos instruções sobre a prece em
geral: o que é a prece, porque é preciso orar, quais são os frutos da oração.
Mas como chegar a orar verdadeiramente – disto ninguém falou nada. Eu escutei
um sermão sobre a prece em espírito e a prece perpétua; mas não se indicava o
modo de se chegar a esta prece. Assim, a frequentação dos sermões não me trouxe
o que eu desejava. Deixei de ir aos pregadores e me decidi a buscar com a ajuda
de Deus um homem sábio e experiente que me explicasse esse mistério, pois era
para isto que meu espírito sentia-se invencivelmente atraído.
Por
muito tempo caminhei; eu lia a Bíblia e me perguntava se não encontraria em
algum lugar um mestre espiritual ou um guia sábio e cheio de experiência. Uma
vez disseram-me que num vilarejo vivia há muito tempo um fidalgo[7] que trabalhava por sua salvação: ele construíra
perto de si uma capela, jamais saía de casa e sem cessar orava a Deus ou lia
livros espirituais. Com esta informação, eu parei de andar e comecei a correr
até o vilarejo; lá chegando, dirigi-me a este senhor.
-
O que deseja de
mim?, perguntou-me.
-
Soube que é um
homem sábio e piedoso; por isso eu lhe peço em nome de Deus que me explique o
que significam estas palavras do Apóstolo: Orai sem cessar, e como é possível orar assim. É isto que desejo
compreender e até o momento não tenho conseguido alcançar.
O
fidalgo permaneceu em silêncio, olhou-me atentamente e disse:
-
A oração
interior é o esforço incessante do espírito humano para atingir a Deus. Para
obter sucesso neste benéfico exercício, convém pedir com muita constância ao
Senhor para que nos ensine a orar sem cessar. Reze mais e com mais zelo, a
prece o fará compreender por si só como torná-la perpétua; mas para tanto será
preciso muito tempo.
Com
estas palavras, ele me fez servir uma refeição, deu-me algumas coisas para o
caminho e me deixou. Mas ele não havia me explicado nada.
Retomei
meu caminho; eu pensava, eu lia, eu refletia como podia sobre o que me dissera
o fidalgo e no entanto era-me impossível compreender; mas eu tinha tanto desejo
de chegar a esta compreensão, que minhas noites passavam sem sono. Após haver
percorrido duzentas verstas[8], cheguei a uma capital de província. Ao longe
divisei um mosteiro. Na hospedaria disseram-me que neste mosteiro vivia um
superior piedoso, caritativo e hospitaleiro. Fui até ele. Recebeu-me com
bondade, fez com que me sentasse e ofereceu-me algo para comer.
-
Santo padre!,
disse-lhe eu, não tenho necessidade de refeição, mas queria que me desse um ensinamento
espiritual: como fazer para ser salvo[9]?
-
Como obter a
salvação? Pois bem, viva segundo os mandamentos, ore a Deus e será salvo!
-
Eu escutei que
devemos orar sem cessar, mas não sei como orar sem parar e sequer consigo
entender o que significa a prece perpétua. Eu lhe peço, meu pai, que me
explique isto.
-
Eu não sei, meu
irmão, como explicar-lhe melhor. Mas espere! Eu tenho um livrinho no qual isto
está exposto; e ele trouxe a Instrução espiritual do homem interior[10]
de são Dimitri. Aqui está, leia esta página.
Eu
comecei a ler o que se segue:
“Estas
palavras do Apóstolo: é preciso orar sem cessar, aplicam-se à prece feita com a inteligência; a inteligência, de fato,
pode estar constantemente mergulhada em Deus e rezar a ele sem cessar.”
-
Explique-me de
que modo a inteligência pode estar permanentemente mergulhada em Deus sem
distração e orando sem cessar.
-
Isto é uma coisa
muito difícil, se Deus não a tornar um dom de si, disse o superior.
Mas
ele não havia me explicado nada.
Eu
passei ali a noite e, na manhã seguinte, tendo-o agradecido por sua amável
acolhida, coloquei-me de novo a caminho sem saber muito bem aonde ir. Estava
triste com minha incompreensão e para me consolar, eu lia a santa Bíblia. Desta
maneira caminhei pela estrada por cinco dias; enfim, num entardecer, encontrei
um velhote que tinha um certo ar religioso.
À
minha indagação, ele respondeu-me que era monge e que o retiro em que vivia com
alguns irmãos ficava a dez verstas da estrada; ele me convidou a ficar com
eles.
-
Em nossa morada,
disse-me, recebemos os peregrinos, cuidamos deles e os alimentamos como em um
albergue.
Eu
não estava muito disposto a ir até lá, e lhe disse:
-
Meu repouso não
depende de hospedagem, mas de um ensinamento espiritual; eu não procuro comida,
pois tenho bastante pão seco no meu bornal.
-
Mas que tipo de
ensinamento você procura, e o que deseja compreender melhor? Venha, venha
conosco, caro irmão; nós temos estarostes[11] experientes que poderão lhe dar uma direção
espiritual e guiá-lo sobre o caminho verdadeiro para a luz da palavra de Deus e
dos ensinamentos dos Padres.
-
Veja, meu pai,
faz quase um ano que, estando presente ao ofício, ouvi este mandamento do
Apóstolo: Orai sem cessar. Não sabendo o
que entender destas palavras, pus-me a ler a Bíblia. Lá também, em muitas
passagens, encontrei o mandamento de Deus: é preciso orar sem cessar, sempre,
em todas as ocasiões, em todos os lugares, não apenas durante a jornada de
trabalho, não apenas durante a vigília, mas também durante o sono: Eu
durmo, mas meu coração vigia[12]. Isto muito me espantou e não pude compreender como
cumprir tal coisa e quais são os meios de o conseguir; um violento desejo e a
curiosidade despertaram em mim: dia e noite estas palavras não saíam de meu
espírito. Assim comecei a freqüentar as igrejas: escutei sermões e sermões
sobre a prece; cansei-me de escutar, mas neles não encontrei como orar sem
cessar; falava-se sempre da preparação para a prece e seus frutos, sem ensinar
como orar sem cessar, nem o que significa uma tal oração. Li muitas vezes a Bíblia
e nela encontrei o que havia ouvido; no entanto não atingi a compreensão
desejada. E, depois de tanto tempo, permaneço incerto e inquieto.
O
estaroste persignou-se e tomou a palavra:
-
Agradeça a Deus,
irmão bem amado, por ter revelado a você uma atração irresistível para a prece
interior perpétua. Reconheça nisto o chamado de Deus e acalme-se pensando que
desta forma a concordância da sua vontade com a palavra divina foi devidamente
provada; foi-lhe dado entender que não é a sabedoria deste mundo nem um vão
desejo de conhecimentos que conduz à luz celeste – a prece interior perpétua –
mas ao contrário é a pobreza de espírito e a experiência ativa na simplicidade
do coração.
Por
isso você não deve se espantar de não ter entendido nada de profundo sobre o
ato de rezar e por não ter aprendido como chegar a esta atividade perpétua. Na
verdade, fala-se muito sobre a oração e existem inúmeras obras recentes
escritas a respeito, mas todos os julgamentos dos seus autores estão
fundamentados sobre a especulação intelectual, sobre os conceitos da razão
natural e não sobre a experiência alimentada pela ação; eles falam mais dos
atributos da prece do que de sua essência própria. Um explica muito bem porque
é necessário rezar; outro fala do poder e dos efeitos benéficos da prece; um
terceiro, das condições necessárias para bem orar, ou seja o zelo, a atenção, o
calor do coração, a pureza de espírito, a humildade, o arrependimento que é
preciso para se por a rezar. Mas o que é a oração e como aprender a orar – a
estas questões que no entanto são essenciais e fundamentais, raramente
encontramos resposta entre os pregadores destes tempos; pois elas são mais
difíceis do que todas as suas explicações e demandam não um saber escolar mas
um conhecimento místico. E, coisa ainda mais triste, esta sabedoria elementar e
vã os leva a medir a Deus com uma escala humana. Muitos cometem um grande erro,
ao pensarem que os meios preparatórios e as boas ações engendram a oração,
enquanto que na verdade é a oração a fonte das obras e das virtudes. Eles tomam
erradamente os frutos ou as conseqüências da prece pelos meios de chegar a ela,
e assim diminuem sua força. Trata-se de um ponto de vista inteiramente oposto à
Escritura, pois o apóstolo Paulo fala assim da oração: Eu lhes recomendo
orar acima de tudo[13].
É
assim que o Apóstolo coloca a oração acima de tudo. Muitas boas obras são
requeridas ao cristão, mas a obra da prece está acima de todas as outras, pois,
sem ela, nenhum bem pode cumprir-se. Sem a oração freqüente, não podemos
encontrar o caminho que conduz ao Senhor, conhecer a Verdade, crucificar a
carne com suas paixões e seus desejos, sermos iluminados no coração pela luz de
Cristo e nos unirmos a ele na salvação. Eu digo freqüente, pois a perfeição e a
correção da nossa prece não dependem de nós, como também diz o apóstolo Paulo: Não
sabemos o que pedir[14]. Apenas a freqüência foi deixada em nosso poder como
meio de atingirmos a pureza da oração que é a mãe de todos os bens espirituais.
Adquira a mãe e você terá uma descendência,
diz são Isaac o Sírio, ensinando que é preciso antes adquirir a oração para
podermos depois colocar em prática as virtudes. Mas os que estão pouco
familiarizados com a prática e os ensinamentos misteriosos dos Padres conhecem
mal essas questões e pouco falam delas.
Assim
conversando, imperceptivelmente chegamos ao retiro. Para não me separar deste
sábio ancião e satisfazer o quanto antes meu desejo, apressei-me em dizer-lhe:
-
Eu lhe peço, pai
venerável, explique-me o que é a prece interior perpétua e como posso
aprendê-la; vejo que você tem uma experiência profunda e segura.
O
estaroste acolheu meu pedido com vontade e convidou-me a ficar:
-
Venha comigo, eu
lhe darei um livro dos Padres que lhe permitirá compreender claramente o que é
a oração e a entendê-la com a ajuda de Deus.
Entramos
em sua célula e o estaroste dirigiu-me as seguintes palavras:
-
A prece de Jesus
interior e constante é a invocação contínua e ininterrupta do nome de Jesus com
os lábios, o coração e a inteligência, com a sensação de sua presença, em todo
lugar e todo tempo, mesmo durante o sono. Ela é expressa por estas palavras: Senhor
Jesus Cristo, tem piedade de mim! Aquele que se
habitua com esta invocação sente um grande consolo e a necessidade de dizer
sempre esta oração; ao final de algum tempo, ele não pode mais passar sem ela e
ela brota nele por si mesma. Compreende agora o que é a prece perpétua?
-
Compreendo
perfeitamente, meu pai! Em nome de Deus, ensine-me agora como chegar a isto,
exclamei cheio de alegria.
-
Como aprender a
rezar, isto o veremos neste livro. Ele se chama Filocalia. Ele contém a ciência completa e detalhada da prece
interior perpétua exposta por vinte e cinco Padres; ele é tão útil e tão
perfeito que é considerado como o guia essencial da vida contemplativa e, como
diz o bem-aventurado Nicéforo, “ele conduz à salvação sem pena e sem dor”.
-
Será ele mais
elevado do que a santa Bíblia?, perguntei.
-
Não, ele não é
mais elevado nem mais santo do que a Bíblia, mas ele contém explicações
luminosas de tudo o que permanece misterioso na Bíblia em razão da fraqueza de
nosso espírito, cujo alcance não chega a estas alturas. Eis uma imagem: o sol é
um astro majestoso, brilhante e soberbo; mas não podemos observá-lo a olho nu.
Para contemplar este rei dos astros e suportar seus raios inflamados, é preciso
empregar um vidro artificial, infinitamente menor e menos brilhante do que o sol. Pois bem, a
Escritura é este sol resplendente e a Filocalia o pedaço de vidro. Veja agora, eu vou ler-lhe como exercer a oração
interior perpétua.
O
estaroste abriu a Filocalia, escolheu
uma passagem de são Simeão o Novo Teólogo e começou:
-
“Permaneça
sentado no silêncio e na solidão, incline a cabeça, feche os olhos; respire mais devagar, observe com sua
imaginação o interior do seu coração,
reuna sua inteligência, ou seja seu pensamento, da cabeça para o seu coração.
Diga ao respirar: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim, em voz baixa, ou simplesmente em espírito.
Esforce-se por afastar todos os pensamentos, seja paciente e repita muitas
vezes este exercício.”
Depois
o estaroste explicou-me tudo com exemplos e lemos ainda na Filocalia as palavras de são Gregório o Sinaíta e dos
bem-aventurados Calixto e Inácio. Tudo o que líamos, o estaroste me explicava
nos seus termos. Eu escutava com atenção e enlevo e esforçava-me por fixar
todas estas palavras em minha memória com a maior exatidão. Passamos assim toda
a noite e fomos às matinas sem termos dormido.
O
estaroste, despedindo-se de mim, abençoou-me e me disse para voltar, durante
meus estudos sobre a oração, para me confessar com franqueza e simplicidade de
coração, porque é vão atirar-se à obra espiritual sem guia.
Na
igreja, senti em mim um zelo ardente que me empurrava a estudar com cuidado a
prece interior perpétua, e eu pedia a Deus que me ajudasse. Depois eu pensei
que seria difícil voltar a ver o estaroste para me confessar ou para pedir-lhe
conselho. Na hospedagem, não poderia ficar mais do que três dias, e nas
proximidades do retiro não havia abrigo... Felizmente, fiquei sabendo que havia
um vilarejo a quatro verstas dali. Lá fui eu em busca de um lugar para ficar e,
para minha felicidade, Deus me favoreceu. Pude me empregar como guarda para um
camponês, com a condição de passar todo o verão isolado numa cabana nos fundos
da horta. Graças a Deus, encontrara um local tranqüilo. Assim, pus-me a viver e
estudar do modo indicado a prece interior, indo visitar o estaroste muitas
vezes.
Durante
uma semana, exercitei-me na solidão de meu jardim ao estudo da prece interior,
seguindo exatamente os conselhos do estaroste. No começo, tudo parecia ir bem.
Depois eu comecei a sentir um grande peso, preguiça, enjôo, um sono insuperável
e os pensamentos caíram sobre mim como nuvens. Corri ao estaroste cheio de
angústia e expus-lhe meu estado. Ele me recebeu com bondade e me disse:
-
Bem amado irmão,
esta é a luta que o mundo escuro trava contra você, pois não há nada que ele
tema mais do que a prece do coração. Ele tenta torturá-lo e fazê-lo desgostar
da oração. Mas o inimigo não age senão conforme a vontade e a permissão de
Deus, na medida em que isto nos é necessário. Sem dúvida é preciso que sua
humildade ainda seja posta à prova: ainda é cedo para que você atinja os
umbrais do coração através de um zelo excessivo, porque você se arriscaria a
cair na avareza espiritual. Vou ler-lhe o que diz a Filocalia a respeito.
O
estaroste procurou nos ensinamentos do monge Nicéforo e leu:
-
“Se, malgrado
seus esforços, meu irmão, você não conseguir penetrar na região do coração,
como eu recomendei, faça o que eu lhe digo e, com a ajuda de Deus, você
encontrará aquilo que procura. Você sabe que a faculdade de locução de todo
homem reside em seu peito... Retire então todos os pensamentos desta faculdade
(você pode, se quiser) e dê a ela o Senhor Jesus Cristo, tem piedade de
mim. Esforce-se para substituir por esta
invocação interior todos os outros pensamentos e, com o tempo, isto certamente
abrirá as portas do coração. Este é um fato provado pela experiência[15].”
-
Veja o que
ensinam os Padres neste caso, disse-me o estaroste. É por isso que você deve
aceitar este mandamento com confiança e recitar tanto quanto puder a prece de
Jesus. Aqui está um rosário com o qual você poderá fazer inicialmente três mil
orações por dia. De pé, sentado, deitado ou caminhando, diga sem cessar: Senhor
Jesus Cristo, tem piedade de mim!, lentamente e
sem pressa. Recite exatamente três mil orações por dia sem acrescentar ou
retirar nenhuma. É assim que você alcançará a atividade perpétua do coração.
Recebi
com alegria estas palavras do estaroste e voltei para minha cabana. Fiz exata e
fielmente o que ele me havia ensinado. Durante dois dias tive alguma
dificuldade, mas depois a coisa se tornou tão fácil que quando eu não dizia a
oração, sentia como que uma necessidade de retomá-la e ela fluía com facilidade
e leveza sem nada que a impedisse do começo.
Contei
isto ao estaroste, que me ordenou recitar seis mil orações por dia e disse:
-
Não se preocupe
e esforce-se apenas por manter fielmente o número de orações que eu lhe
prescrevi: Deus será misericordioso com você.
Durante
uma semana, eu permaneci em minha cabana solitária recitando diariamente minhas seis mil orações
sem me preocupar com nada além e sem ter que lutar contra os pensamentos.
Procurei apenas observar exatamente as ordens do estaroste. O que aconteceu? Eu
me habituei de tal modo com a oração que, se eu me detivesse por um curto
instante, sentia um vazio como se houvesse perdido alguma coisa; assim que
retomava a oração, sentia-me outra vez leve e feliz. Se eu encontrasse com
alguém, não sentia mais vontade de falar, eu queria apenas estar a sós e
recitar a oração, tanto havia me habituado ao cabo de uma semana.
O
estaroste, que não me via há dez dias, veio pessoalmente saber das novidades.
Expliquei-lhe o que me acontecia. Depois de me escutar, ele disse:
-
Você habituou-se
à prece. Veja, agora você deve manter este hábito e fortalecê-lo: não perca
tempo e, com ajuda de Deus, tome a resolução de rezar doze mil orações por dia;
permaneça na solidão, levante-se um pouco mais cedo, durma um pouco mais tarde e
venha ver-me duas vezes por mês.
Conformei-me
às ordens do estaroste e, no primeiro
dia, foi com muita dificuldade que cheguei às minhas doze mil orações, que
terminei tarde da noite. No dia seguinte consegui com mais facilidade e com
prazer. No começo eu senti fadiga, uma espécie de enrijecimento da língua e um
ardor nos maxilares, mas sem nada de desagradável; depois senti um ligeiro
incômodo no palato, em seguida no punho da mão esquerda que segurava o rosário,
enquanto meu braço aquecia-se até o cotovelo, produzindo uma sensação
deliciosa. E isto só fez incitar-me a recitar ainda melhor a prece. Assim,
durante cinco dias eu executei fielmente as doze mil orações e, ao mesmo tempo
em que adquiria o hábito, recebia o gosto e o agrado pela prece.
Numa
bela manhã, eu fui como que despertado pela oração. Comecei a dizer minhas
orações da manhã, mas minha língua se embaraçava e eu não tinha outro desejo do
que o de recitar a prece de Jesus. Assim que a retomei, fiquei imediatamente
feliz e meus lábios começaram a murmurá-la sem esforço. Passei todo dia na
maior felicidade. Estava como que separado de tudo e sentia-me em outro mundo.
Terminei sem dificuldade minhas doze mil orações antes do final do dia. Eu bem
gostaria de continuar, mas não ousei ultrapassar a cifra indicada pelo
estaroste. Nos dias que se seguiram, continuei a invocar o nome de Jesus
Cristo, com facilidade e sem jamais me cansar.
Fui
ver o estaroste e contei-lhe tudo isso em detalhe. Quando eu terminei, ele
disse:
-
Deus lhe deu o
desejo de orar e a possibilidade de fazê-lo sem dificuldade. Este é um efeito
natural produzido pelo exercício e pela constante aplicação, assim como um
moinho a cuja mó imprimimos um movimento continua a girar por si mesmo se o
deixarmos; mas, para que ele permaneça em movimento, é preciso engraxá-lo e
dar-lhe vez por outra um novo impulso. Você pode ver agora as qualidades
maravilhosas com que o Deus amigo dos homens dotou nossa própria natureza
sensível; e você experimentou as sensações extraordinárias que podem nascer
mesmo na alma pecadora, na natureza impura ainda não iluminada pela graça. Mas
que grau de perfeição, de alegria e de enlevo
atinge o homem quando o Senhor lhe concede revelar a prece espiritual
espontânea e purificar sua alma das paixões! É um estado inexprimível e a
revelação deste mistério é um antegozo da doçura celeste. Este é o dom que
recebem aqueles que buscam o Senhor na simplicidade de um coração transbordante
de amor!
Daqui
para frente, eu permito a você recitar quantas orações quiser; experimente
consagrar todo o tempo da vigília à prece e invoque o nome de Jesus sem mais
contar, remetendo-se humildemente à vontade de Deus e esperando seu socorro;
ele não o abandonará e guiará seu caminho.
Obedecendo
a esta regra, passei todo o verão recitando sem cessar a prece de Jesus e
senti-me inteiramente tranqüilo. Durante o sono, algumas vezes chegava a sonhar
que recitava a oração. E durante o dia, quando me acontecia encontrar pessoas,
elas me pareciam tão amáveis como se fossem de minha família. Mas eu não
permanecia com elas. Meus pensamentos estavam apaziguados e eu não vivia senão
com a prece; eu começava a inclinar meu espírito a escutar e de vez em quando
meu coração sentia por si só um calor e uma grande alegria. Quando me ocorria
entrar na igreja, o longo silêncio da solidão me parecia curto e já não me
deixava como antes. A cabana solitária me parecia um esplêndido palácio e eu já
não sabia como agradecer a Deus por ter enviado a mim, pobre pecador, um
estaroste com ensinamentos tão benéficos.
Mas
eu não pude desfrutar por muito tempo da orientação do meu bem amado e sábio
estaroste – ele morreu no final do verão. Despedi-me dele com lágrimas e,
agradecendo-o por seus ensinamentos paternais, pedi-lhe que me deixasse, como
uma bênção, o rosário com o qual ele orava todos os dias. E assim fiquei só. O
verão terminou, colhemos os frutos do jardim. Eu já não tinha onde morar. O
camponês me deu dois rublos de prata como pagamento, encheu meu bornal com pão
seco para a viagem e eu retomei minha vida errante; mas eu já não estava
necessitado como antes. A invocação do nome de Jesus Cristo me alegrava ao
longo da marcha e todos me tratavam com bondade; parecia que todos estavam
dispostos a amar-me.
Um
dia eu me perguntei sobre o que faria com os rublos que me dera o camponês.
Para que me serviriam? Sim! Eu já não tinha o estaroste, nem ninguém para me
guiar; portanto, iria adquirir um exemplar da Filocalia e com ela estudar a prece interior. Fiz o sinal da
cruz e retomei o caminho rezando. Cheguei a uma capital provincial e comecei a
procurar a Filocalia pelas lojas;
encontrei uma, mas o comerciante queria três rublos por ela e eu não possuía
senão dois; tentei negociar, mas ele não quis fazer nenhum abatimento; enfim,
ele me disse:
-
Vá a esta
igreja, pergunte pelo sacristão; ele tem um velho livro como este, que talvez
lhe ceda por dois rublos.
Lá
fui eu e, com efeito, adquiri por dois rublos uma Filocalia bastante velha e
estragada; fiquei felicíssimo. Acomodei-a como pude em um pano e a pus em meu
bornal junto com a Bíblia.
***
Eis
como vou agora, dizendo sem cessar a prece de Jesus, que me é mais cara e doce
do que tudo no mundo. Às vezes, eu caminho mais de setenta verstas num dia e
nem sinto que estou indo; eu sinto somente que recito a oração. Quando um frio
violento me colhe, eu recito a prece com mais atenção e logo me sinto aquecido.
Se a fome fica muito forte, invoco mais vezes ainda o nome de Jesus Cristo e já
não me lembro dela. Se me sinto doente ou se minhas costas ou minhas pernas me
supliciam, eu me concentro na prece e já não sinto dor. Quando alguém me
ofende, eu não penso senão na benfazeja oração de Jesus; logo desaparece a
cólera ou a pena e eu esqueço tudo. Eu me tornei um pouco bizarro. Não tenho
necessidade de nada, nada me ocupa, nada do que é exterior me retém, eu
gostaria de estar todo o tempo a sós. Como hábito, eu não tenho senão um
cuidado: recitar a oração sem cessar, e, quando o faço, estou feliz. Deus sabe
o que se passa dentro de mim. Naturalmente, tudo isso não passa de impressões
sensíveis ou, como dizia o estaroste, do efeito da natureza e de um hábito
adquirido; mas eu não ouso ainda dedicar-me ao estudo da prece espiritual no
interior do coração, pois ainda sou demasiado indigno e bruto. Aguardo de Deus
esta hora, esperando da prece de meu falecido estaroste. Assim, ainda não
alcancei a prece espiritual do coração, automática e perpétua; mas, graças a
Deus, compreendo agora claramente o que significam as palavras do Apóstolo que
ouvira naquele dia: Orai sem cessar.
SEGUNDO RELATO
Tempos
e tempos eu viajei por toda espécie de lugares, acompanhado da prece de Jesus,
que me fortificava e me consolava por todos os caminhos, em todas as ocasiões e
em todos os encontros. No final, pareceu-me que seria bom fazer uma parada para
encontrar uma solidão mais completa e para estudar a Filocalia, que eu não podia ler senão no fim do dia ou durante
o repouso do meio-dia; eu tinha um grande desejo de mergulhar nela longamente
para extrair com fé a doutrina verdadeira da salvação da alma pela prece do
coração. Infelizmente, para satisfazer este desejo, eu não poderia empregar-me
em nenhum trabalho manual por ter perdido o uso do braço esquerdo desde a
primeira infância; assim, diante da impossibilidade de me fixar em alguma
parte, eu me dirigi para a Sibéria, a Santo Inocêncio de Irkutsk, pensando que,
nas planícies e florestas de lá, eu encontraria mais silêncio e poderia
dedicar-me mais comodamente à leitura e à oração. E para lá fui, recitando sem
cessar a oração.
Ao
cabo de algum tempo, senti que a prece
passava por si só ao meu coração, ou seja que meu coração, batendo
regularmente, punha-se de certo modo a recitar as santas palavras a cada
batida, como por exemplo: um – Senhor;
dois – Jesus; três – Cristo, e assim por diante. Parei de murmurar com os
lábios e passei a escutar atentamente o que dizia meu coração; tentei também
observar o interior do coração, lembrando como reveria ser agradável, conforme
as palavras de meu falecido estaroste. Depois, senti uma ligeira dor no coração
e em meu espírito um tal amor por Jesus Cristo que me pareceu que, se o visse,
atirar-me-ia aos seus pés, agarrando-os e banhando-os com minhas lágrimas,
agradecendo-lhe o consolo que nos dá com seu nome, em sua bondade e amor por
sua criatura indigna e culpável.
Logo
surgiu em meu coração um calor benfazejo que se espalhou por todo o meu peito.
Isto levou-me especificamente a uma leitura atenta da Filocalia para nela verificar as sensações e estudar o
desenvolvimento da prece interior do coração; sem este controle, eu temia cair
na ilusão, tomar as ações da natureza como sendo as da graça e orgulhar-me por
esta aquisição rápida da oração, segundo já me explicara meu falecido
estaroste. Por isso passei a marchar à noite e passava os dias a ler a Filocalia sentado na floresta sob as árvores. Ah!, quantas
coisas novas, profundas e ignoradas eu descobri nesta leitura! Com esta
ocupação, eu gozava de uma beatitude mais perfeita do que tudo o que pudera
imaginar até então. Sem dúvida, algumas passagens permaneciam incompreensíveis
ao meu espírito limitado, mas os efeitos da prece do coração esclareciam-me
aquilo que eu não entendia; ademais, eu via ocasionalmente em sonhos meu
falecido estaroste que me explicava muitas das dificuldades enquanto mais e
mais inclinava minha alma desentendida à humildade. Passei dois meses do verão
nesta felicidade perfeita. Eu viajava sobretudo pelos bosques e pelos caminhos
do campo; quando chegava a uma vila, pedia um saco de pão, um dedo de sal,
enchia de água o cantil e partia para mais cem verstas.
O PEREGRINO É ATACADO POR LADRÕES[16]
Sem
dúvida devido aos pecados de minha alma endurecida, ou para meu progresso
espiritual, as tentações apareceram no final do verão. Eis como aconteceu: numa
tarde em que eu havia acabado de chegar à estrada principal, encontrei dois
homens que tinham jeito de soldados; eles me pediram dinheiro. Quando eu lhes
disse que não possuía sequer um sou[17], eles não quiseram acreditar e gritaram brutalmente:
-
Você mente! Os
peregrinos juntam muito dinheiro!
Um
deles acrescentou:
-
Inútil continuar
falando com ele!, e bateu-me na testa com seu bastão; eu caí inconsciente.
Não
sei por quanto tempo fiquei assim, mas quando voltei a mim, vi que estava na
floresta próximo da estrada; eu estava todo arrebentado e meu saco havia
desaparecido; não restavam mais do que as pontas do cordão que o atava. Graças
a Deus, eles não haviam levado meu passaporte que eu guardava em minha boina
para poder mostrá-lo rapidamente quando fosse necessário. Pondo-me em pé,
chorei amargamente não tanto por causa das dores, mas pelos meus livros, minha
Bíblia e minha Filocalia, que estavam no
saco roubado. Durante todo o dia e por toda a noite eu me afligi e chorei.
Aonde estaria minha Bíblia, que eu lia desde criança e que estava sempre comigo?
Aonde minha Filocalia, da qual eu tirava
ensinamento e consolo? Infelizmente, eu havia perdido o único tesouro da minha
vida, sem que dele tivesse me saciado. Teria sido melhor morrer do que viver
assim sem alimento espiritual. Jamais eu poderia encontrá-los novamente.
Durante
dois dias eu mal pude caminhar, tão aflito estava; no terceiro dia, eu tombei
no fim de minhas forças perto de uma moita e adormeci. No sonho, eu me vi a
sós, na cela de meu estaroste e chorei-lhe minha angústia. Depois de haver-me
consolado, o estaroste me disse:
-
Que isto lhe
seja uma lição sobre o desligamento das coisas terrestres, para que você vá
mais livremente para o céu. Esta prova lhe foi enviada para que você não caia
na volúpia espiritual. Deus quer que o cristão renuncie à sua vontade própria e
a toda ligação com ela, a fim de se remeter inteiramente à vontade divina. Tudo
o que ele faz é para o bem e a salvação do homem. Ele quer que todos sejam
salvos[18]. Então, recobre a coragem e creia que com a
tentação, o Senhor prepara também uma saída feliz[19]. Logo você receberá um consolo maior do que toda a
sua pena.
Com
estas palavras eu despertei, sentindo em mim novas forças, e em minha alma uma
aurora e uma calma novas. Seja feita a vontade do Senhor!, disse para mim
mesmo. Levantei-me, persignei-me e parti. A prece agitava meu coração novamente
como antes e durante três dias eu caminhei tranqüilamente.
Subitamente,
encontrei no caminho um grupo de condenados que era conduzido sob escolta.
Aproximando-me, percebi os dois homens que me haviam assaltado e, como eles
caminhavam na lateral da coluna, atirei-me aos seus pés e supliquei que me
dissessem aonde estavam meus livros. No começo fizeram cara de que não me
conheciam, mas depois um deles me disse:
-
Se você nos der
qualquer coisa, nós lhe diremos onde estão seus livros. Precisamos de um rublo
de prata.
Eu
jurei que lhes traria, de qualquer jeito, ainda que tivesse que mendigar para
tanto.
-
Tomem, se
quiserem, fiquem com meu passaporte como garantia.
Eles
me disseram que meus livros estavam nas carroças com outros objetos roubados
que lhes tinham sido retirados.
-
Como posso
obtê-los?
-
Pergunte ao
comandante da escolta.
Corri
ao comandante e lhe expliquei a coisa em detalhe. Durante a conversa, ele
perguntou-me se eu sabia ler a Bíblia.
-
Não apenas sei
ler, disse eu, como sei escrever; você verá na Bíblia uma inscrição que mostra
que ela me pertence; e aqui está no passaporte meu nome e sobrenome.
O
capitão me disse:
-
Estes bandidos
são desertores, eles viviam em uma cabana e pilhavam os passantes. Um cocheiro
precavido deteve-os ontem, quando tentavam roubar-lhe a charrete. O melhor que
posso fazer é devolver-lhe seus livros, se estiverem aí; mas é preciso que você
nos acompanhe até o próximo posto; fica a quatro verstas e eu não posso parar o
comboio apenas por sua causa.
Eu
caminhei alegremente ao lado do cavalo do capitão e conversei com ele. Vi que
era um homem honesto e bom e que já não era jovem. Ele perguntou-me quem eu
era, de onde vinha e para onde ia. Eu lhe respondi com toda a sinceridade; e
assim chegamos ao posto. Ele foi procurar meus livros e os trouxe para mim,
dizendo:
-
Aonde vai você
agora? Já é noite; você deve permanecer comigo.
Eu
fiquei. Estava tão feliz por haver reencontrado meus livros que já não sabia
como agradecer a Deus; eu os apertava contra meu coração até me doerem os
braços. Lágrimas de felicidade escorriam dos meus olhos, e meu coração batia
com deliciosa alegria.
Vendo-me,
o capitão me disse:
-
Vejo que você
adora ler a Bíblia.
Em
minha alegria, eu não conseguia responder-lhe uma palavra sequer. Eu não fazia
senão chorar. Ele prosseguiu:
-
Também eu, meu
irmão, leio diariamente o Evangelho com atenção. – Buscando na algibeira do uniforme, ele tirou
um pequeno Evangelho de Kiev com a capa em prata – Sente-se e eu lhe contarei
como adquiri este hábito. Alô! Sirvam-nos algo para comer!
HISTÓRIA DO CAPITÃO
Nós
nos sentamos à mesa. O capitão começou seu relato:
-
Desde minha
juventude, eu sempre servi no exército, mas nunca em guarnição. Eu conhecia bem
o serviço e meus chefes me consideravam como um porta-bandeira modelo. Mas eu
era jovem e meus amigos também; para minha infelicidade, aprendi a beber e me
entreguei à bebida de tal modo que me tornei doente; quando eu não bebia, era
um excelente oficial, mas ao menor copo, ficava seis semanas no leito. Durante
longo tempo suportaram-me, mas, ao final, por haver insultado um superior
depois de beber, fui degradado e condenado a servir três anos numa guarnição;
se eu não abandonasse a bebida, estava ameaçado de castigos os mais severos.
Nesta miserável condição, eu tentei me controlar, tentei curar-me, mas não pude
desembaraçar-me de minha paixão e foi decidido que eu seria enviado aos
batalhões de disciplina. Quando eu soube disto, já não sabia o que fazer.
Um
dia, continuou ele, estava sentado em meu quarto pensando nessas coisas. Eis
que chegou um monge que recolhia donativos para uma igreja. Cada um dava o que
podia. Chegando-se a mim, ele me perguntou:
-
Porque está tão
triste?
Falei
um pouco com ele e lhe contei minha infelicidade. O monge, compadecido de minha
situação, me disse:
-
A mesma coisa
aconteceu com meu próprio irmão, e eis como ele se libertou: seu pai espiritual
lhe deu um Evangelho e ordenou-lhe que lesse um capítulo, cada vez que tivesse
vontade de beber; e, se a vontade voltasse, ele deveria ler o capítulo
seguinte. Meu irmão pôs em prática este conselho e, ao cabo de pouco tempo, a
paixão pela bebida deixou-o. Já se vão quinze anos que ele não prova uma bebida
forte. Faça o mesmo, e você verá logo como funciona. Eu tenho um Evangelho, se
você quiser eu o darei a você.
Diante
destas palavras, eu lhe disse:
-
Que quer você
que eu faça com seu Evangelho, quando nem meus esforços, nem os meios médicos
puderam deter-me? – Mas eu falava assim porque nunca havia lido o Evangelho.
-
Não diga isso,
replicou o monge. Eu lhe asseguro que você achará grande proveito.
No
dia seguinte, com efeito, o monge me trouxe este Evangelho. Eu o abri, olhei,
li algumas frases e lhe disse:
-
Eu não o quero;
não compreendo bem o que está aí; não tenho o hábito de ler os caracteres da
igreja[20].
O
monge continuou a exortar-me, dizendo que nas próprias palavras do Evangelho
reside uma força benéfica; pois foi o próprio Deus que ditou as palavras que
achamos impressas nele.
-
Não tem
importância se você não compreende, apenas leia com atenção. Um santo disse: Se
você não compreende a palavra de Deus, os diabos compreendem o que você lê e
eles tremem[21]; e é certo que o desejo de beber é claramente obra
dos demônios. Eu lhe direi mais isto: João Crisóstomo escreve que mesmo o lugar
em que é guardado o Evangelho espanta os espíritos das trevas e forma um
obstáculo às suas intrigas.
Não
me lembro bem – acho que dei alguma coisa ao monge – mas peguei seu Evangelho e
o coloquei na mala com minhas coisas; e esqueci-me por completo dele. Depois de
algum tempo, chegou a hora de beber; eu estava louco de vontade e abri minha
mala para pegar dinheiro e ir ao cabaré. O Evangelho surgiu diante de meus
olhos e, lembrando-me subitamente de tudo o que me havia dito o monge, abri-o e
comecei a ler o primeiro capítulo de Mateus. Li quase até o final sem
compreender nada; mas eu me lembrei do que havia dito o monge: não tem
importância se você não compreender, apenas leia com atenção. Pois bem, disse
eu, tentemos mais um capítulo. A leitura já me pareceu mais clara. Vejamos
ainda um terceiro: mal havia começado a ler, soaram badaladas: era a chamada
para a noite. Já não havia como deixar a caserna; assim, permaneci sem beber.
Na
manhã seguinte, quando ia sair para procurar a água da vida, eu disse para mim
mesmo: e se eu lesse um capítulo do Evangelho? Vejamos. Eu o li e já não me
movi. Outra vez, em que tive desejo do álcool, pus-me a ler e me senti
consolado. Assim fui me sentindo confortado e, a cada assalto do desejo, eu me
agarrava a um capítulo do Evangelho. Quanto mais tempo passava, melhor a coisa
ia. Quando terminei os quatro Evangelhos, minha paixão pelo álcool havia
desaparecido completamente: eu havia me tornado indiferente a seu respeito. E
já lá se vão vinte anos que eu não toco em nenhuma bebida forte.
Todos
ficaram espantados com minha mudança; depois de três anos, fui readmitido ao
quadro dos oficiais, subi os graus sucessivos e tornei-me capitão. Casei-me,
tendo encontrado uma excelente esposa; conseguimos juntar alguns bens, e hoje,
graças a Deus, tudo vai bem; nós ajudamos os pobres como podemos e recebemos os
peregrinos. Tenho um filho que já é oficial, um bravo rapaz.
Assim,
veja você, após minha cura, eu me prometi ler a cada dia da minha vida, até meu
último dia, um dos quatro Evangelhos inteiro, sem admitir nenhum impedimento. É
o que faço. Quando estou por demais cansado do trabalho e fatigado, eu me deito
e peço à minha esposa ou ao meu filho que leiam o Evangelho junto a mim, de
modo a observar minha regra. Em testemunho de reconhecimento e para glória de
Deus, mandei cobrir este Evangelho com prata maciça e o trago sempre junto ao
meu peito.
Eu
escutei com prazer este relato do capitão e lhe disse:
-
Conheço um caso
parecido: em nossa vila havia um excelente operário, muito versado em seu
ofício. Mas, para sua desgraça, ele bebia, e muito. Um homem piedoso
aconselhou-o a recitar trinta e três preces de Jesus em honra da Santíssima
Trindade e conforme aos anos da vida terrestre de Jesus Cristo, cada vez que
tivesse vontade de beber. È o que ele fez, e logo deixou de beber. E não é
tudo: depois de três anos, ele entrou para um mosteiro.
-
E o que é
melhor, perguntou o capitão, a prece de Jesus ou o Evangelho?
-
Tudo é uma só
coisa, respondi-lhe. O Evangelho é como a prece de Jesus: pois o nome divino de
Jesus Cristo encerra em si todas as verdades evangélicas. Os Padres dizem que a
prece de Jesus é o resumo de todo o Evangelho.
A
seguir, dissemos nossas orações; logo o capitão começou a ler desde o início o
Evangelho de são Marcos e eu o escutei enquanto fazia a prece em meu coração. O
capitão terminou sua leitura às duas horas e nós fomos nos deitar.
Como
hábito, costumo acordar cedo pela manhã; todos ainda dormiam; o dia mal
começara quando mergulhei em minha querida. Com que alegria a abri! Parecia-me
haver reencontrado meu próprio pai depois de uma longa ausência ou um amigo
ressuscitado dos mortos. Eu a abraçava e agradecia a Deus por me havê-la
devolvido; comecei a ler Teolepto de Filadélfia na segunda parte da Filocalia. Fiquei espantado em ver que ele propõe que nos
dediquemos a três ordens de atividades simultaneamente: sentado à mesa, diz
ele, dê ao seu corpo o alimento, ao seu ouvido a leitura e ao seu espírito a
oração. Mas a lembrança do agradável jantar do dia anterior explicou-me na
prática este pensamento. Foi então que eu compreendi a diferença entre coração
e espírito.
Quando
o capitão despertou, fui agradecer-lhe a bondade e dizer-lhe adeus. Ele me deu
chá, um rublo de prata e nos separamos. Retomei meu caminho todo alegre.
Depois
de uma versta andada, lembrei-me de que prometera ao soldados um rublo, que eu
agora possuía. Deveria eu entregá-lo ou não? Por um lado, eu me dizia, eles o
atacaram e roubaram, e agora já nada podem fazer, porque estão detidos. Mas por
outro lado, lembre-se do que está escrito na Bíblia: Se teu inimigo tem
fome, dê-lhe de comer[22]. E o próprio Jesus Cristo disse: Amai vossos
inimigos[23], e também: Se alguém te citar em justiça para
tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa[24]. Assim persuadido, voltei sobre meus passos e
cheguei ao posto no momento em que o comboio estava se formando para partir;
corri até os dois malfeitores e lhes deslizei meu rublo entre as mãos dizendo:
-
Rezem e façam
penitência; Jesus Cristo é amigo dos homens. Ele não os abandonará!
Com
estas palavras afastei-me e retomei meu caminho em outra direção.
SOLIDÃO
Após
haver feito cinqüenta verstas pela estrada principal, tomei por caminhos pela
campo, mais solitários e próprios à leitura. Por muito tempo, caminhei por
bosques; de tempos em tempos, passava por alguma vila.
Muitas
vezes eu me instalava durante todo o dia na floresta para ler a Filocalia; extraía dela conhecimentos espantosos e profundos.
Meu coração estava inflamado pelo desejo de unir-se a Deus pela prece interior
que eu me esforçava por estudar e controlar com a Filocalia; ao mesmo tempo, eu estava triste por não encontrar
um abrigo aonde pudesse dedicar-me à leitura em paz e sem interrupção.
Por
esta época, eu também lia a Bíblia e senti que começava a compreendê-la melhor;
encontrava nela cada vez menos passagens obscuras. Os Padres têm razão em dizer
que a Filocalia é a chave que descobre
os mistérios encerrados na Bíblia. Sob sua direção, eu comecei a compreender o
sentido oculto da Palavra de Deus; eu descobri o que significam o homem
interior no fundo do coração[25], a oração verdadeira, a adoração em espírito[26], o Reino em nosso interior[27], a intercessão do Espírito Santo[28]; eu compreendi o sentido destas palavras: permanecei
em mim[29], dê-me seu coração[30], estar revestido do Cristo[31], as bodas do Espírito em nossos corações[32], a invocação Abba Pai[33] e muitas outras. Quando ao mesmo tempo eu orava do
fundo do coração, tudo o que me cercava surgia-me sob um aspecto arrebatador:
as árvores, as plantas, os pássaros, a terra, o ar, a luz, tudo parecia
dizer-me só existirem para o homem, testemunharem o amor de Deus pelo homem;
tudo orava, tudo cantava a glória de Deus! Eu compreendi assim o que a Filocalia chama “o conhecimento da linguagem da criação”, e vi
como é possível conversar com as criaturas de Deus.
HISTÓRIA DO GUARDA FLORESTAL
Durante
muito tempo viajei assim. Por fim, cheguei a uma região tão afastada que fiquei
três dias sem ver sequer um vilarejo. Meu pão havia terminado e eu me
perguntava com inquietação como não morrer de fome. Mas comecei a orar em meu
coração e meu abatimento desapareceu; coloquei-me à disposição de Deus e
tornei-me alegre e tranqüilo. Eu ia avançando um pouco mais pela estrada
através de uma imensa floresta quando percebi diante de mim um cão de guarda
que saía da mata; eu o chamei e ele veio, todo gentil, receber carinho.
Alegrei-me e pensei: Eis a bondade de Deus! Certamente haverá um rebanho nesta
floresta e este deve ser o cachorro do pastor, ou talvez haja um caçador
perseguindo sua caça por aqui; de qualquer modo, poderei pedir um pouco de pão,
pois já se passam dois dias sem que eu coma nada, ou então informar-me da
existência de alguma vila nas imediações. O cão, depois de dar algumas voltas
ao meu redor, vendo que não havia nada para comer, meteu-se na floresta pelo
mesmo caminho de onde viera. Eu o segui; ao cabo de duzentos metros, percebi no
meio das árvores o cachorro instalado em um abrigo, latindo só com a cabeça de
fora.
Vi
aproximar-se por entre as árvores um homem magro e pálido, de meia idade. Ele
perguntou-me como chegara até ali. Eu lhe perguntei o que fazia num lugar tão
ermo. Trocamos algumas palavras amigáveis. O homem convidou-me a entrar em sua
cabana e explicou-me ser guarda florestal, incumbido de vigiar esta floresta
que deveria ser cortada. Ele me ofereceu pão e sal, e começamos uma
conversação.
-
Eu invejo esta
vida solitária que você leva, disse-lhe; não é como eu, sempre errante e em
contato com todo o mundo.
-
Se você quiser,
respondeu-me ele, pode muito bem viver aqui; existe mais adiante uma velha
cabana, que servia ao antigo guarda; está um pouco derrubada, mas serve para o
verão. Você possui um passaporte. Temos pão suficiente para nós dois, que me
trazem da vila a cada semana; e aqui há um arroio que nunca seca. Quanto a mim,
irmão, já faz dez anos que não como outra coisa que não seja pão, e não bebo
senão água. Somente no outono, quando os trabalhos no campo terminarem, virão
duzentos homens para o corte; já não terei o que fazer aqui, e não me
permitirão permanecer.
Diante
destas palavras, senti tamanha alegria que quase me atirei aos seus pés. Não
sabia como agradecer a Deus sua bondade para comigo.
Tudo
o que eu desejava e pelo quê tanto me inquietava, recebia agora de repente.
Faltavam ainda quatro meses para o meio do outono, e eu poderia, durante este
tempo, aproveitar o silêncio e a paz para estudar com a ajuda da Filocalia a prece perpétua e interior do coração. Assim
resolvi instalar-me na cabana indicada. Continuamos a falar e este irmão
simples contou-me sua vida e suas idéias.
-
Em minha aldeia,
disse ele, eu não era o último; eu tinha um ofício, tingia panos em vermelho e
azul; viva sossegado, mas não sem pecados: eu enganava a clientela e jurava por
qualquer coisa; eu era grosseiro, beberrão e brigador.
Nesta
aldeia, continuou, havia um velho mestre do coro que possuía um livro antigo,
muito antigo, sobre o Juízo final[34]. Ele vinha freqüentemente lê-lo para os fiéis
ortodoxos, que lhe davam algum dinheiro por isso; ele vinha a mim, também. Na
maior parte das vezes, eu lhe dava dez sous e um copo de água da vida e ele
permanecia lendo até o canto do galo. Uma vez em que eu trabalhava ouvindo-o,
ele leu uma passagem sobre as torturas do inferno e sobre a ressurreição dos
mortos, como Deus virá julgar, como os anjos soprarão as trombetas, quanto fogo
e poeira haverá e como os vermes devorarão os pecadores. Subitamente, senti um
terror apavorante e disse a mim mesmo: Não escaparei aos tormentos! Tenho que
começar a salvar minha alma e talvez eu chegue a libertar-me de meus pecados.
Refleti longamente a respeito e decidi-me a abandonar meu ofício; vendi minha
casa e, como morava só, fiz-me guarda florestal, não pedindo mais salário do
que apenas pão, algo com que me cobrir e velas para iluminar durante minhas
orações.
Faz
mais de dez anos que vivo aqui. Não como mais do que uma vez por dia e somente
pão e água. Cada noite, levanto-me ao primeiro canto do galo e até que o dia
apareça faço minhas genuflexões prostrando-me por terra; enquanto rezo, acendo
sete velas diante das imagens. Durante o dia, enquanto percorro a floresta,
carrego sobre a pele sessenta libras[35] de correntes. Não juro mais, nem bebo nem cerveja
nem álcool, não discuto com ninguém; mulheres e raparigas, não sei o que é
isto.
De
início, eu estava bem contente em viver assim, mas, contra minha vontade,
acabei assaltado por dúvidas e reflexões que não consigo afastar. Deus sabe se
conseguirei me livrar de meus pecados, mas esta vida é bem dura. E depois,
seria verdade o que dizia o livro? Como pode o homem ressuscitar? Aqueles que
morreram há cem anos ou mais, sequer sua poeira subsiste. E quem pode saber se
há ou não um inferno? Em todo caso, ninguém jamais voltou do outro mundo;
quando o homem morre, ele apodrece e não deixa nem traço. Talvez os popes[36] ou os funcionários que escreveram este livro o
tenham feito para nos assustar, a nós, os imbecis, para que sejamos submissos.
Assim, vivemos penosamente, sem consolo nesta terra, e no outro mundo não há
mais nada! Então, para que serve tudo isso? Não valeria mais ter ao menos um
pouquinho de bom tempo, depois de tudo? Estas idéias me perseguem, acrescentou
ele, e receio ter de retomar meu antigo ofício.
Eu
estava cheio de piedade por ele e me dizia: achamos que apenas os sábios e os
intelectuais se tornam livres pensadores e não crêem mais em nada, mas nossos
irmãos, cidadãos simples, como são capazes de fabricar a descrença! Certamente
o mundo escuro está perto de todos e ataca talvez mais facilmente os mais
simples. É preciso raciocinar tanto quanto possível e fortificarmo-nos contra o
inimigo pela Palavra de Deus.
Então,
para sustentar um pouco este irmão e reafirmar sua fé, tirei de meu saco a
Filocalia e a abri no capítulo 109 do bem-aventurado Hesíquio. Eu o li para ele
e expliquei-lhe que não se deve evitar o pecado apenas pelo medo do castigo,
pois a alma só pode libertar-se dos pensamentos culpáveis pela vigilância do
espírito e a pureza do coração. Tudo isso se adquire pela prece interior. Se
alguém se engaja na via ascética, não somente por medo das torturas do inferno,
mas até pelo desejo do reino celeste, acrescentei, os Padres comparam sua ação
à de um mercenário. Eles dizem que o medo dos tormentos é o caminho do escravo
e que o desejo de recompensa é o caminho do mercenário. Mas Deus quer que
cheguemos a ele como filhos: ele quer que o amor e o zelo nos levem a nos
conduzir dignamente, e que usufruamos da união perfeita com ele na alma e no
coração[37].
-
Você pode
esgotar-se, impor-se provações e os trabalhos físicos mais duros; se você não
tiver sempre Deus no espírito e a prece de Jesus no coração, jamais estará ao
abrigo dos maus pensamentos; você estará sempre disposto a pecar na primeira
ocasião. Coloquemo-nos portanto, irmão, a recitar sem cessar a prece de Jesus;
nesta solidão é bem fácil; logo você verá o proveito. As idéias ímpias
desaparecerão, a fé e o amor por Jesus Cristo revelar-se-ão a você; você
compreenderá como os mortos podem ressuscitar e o Juízo final lhe surgirá como
ele é verdadeiramente. E em seu coração haverá tanta leveza e felicidade que
você ficará espantado; você não ficará mais desanimado ou confuso por causa de
sua vida de penitência!
A
seguir eu lhe expliquei o melhor que pude como recitar a prece de Jesus segundo
o mandamento divino e os ensinamentos dos Padres. Ele pareceu não ter mais
tantas dúvidas e sua perturbação diminuiu. Então, separando-me dele, entrei na
velha cabana que ele me havia indicado.
TRABALHOS ESPIRITUAIS
Meu
Deus! Quanta felicidade, quanta consolação, que arrebatamento senti ao transpor
os umbrais deste refúgio, ou melhor dizendo deste túmulo; a cabana pareceu-me
um palácio cheio de alegria. Com lágrimas de felicidade agradeci a Deus e disse
a mim mesmo: Pois bem, agora, nesta calma e nesta paz, é preciso trabalhar
seriamente e orar ao Senhor para que me esclareça o espírito. Assim comecei a
ler a Filocalia do princípio ao fim com
a maior atenção. Em pouco tempo eu havia terminado a leitura e me dei conta da
sabedoria, da santidade e da profundidade deste livro. Mas como nele eram
tratados diversos assuntos, eu não conseguia entender tudo nem concentrar as
forças do meu espírito apenas sobre o ensinamento da oração interior a fim de
chegar à prece espontânea e perpétua no interior do coração. Mas eu tinha
grande necessidade disto, conforme o mandamento divino transmitido pelo
Apóstolo: Buscai os dons mais perfeitos[38], e também: Não extingais o espírito[39]. Por mais que eu refletisse, não sabia o que fazer.
Eu não tinha inteligência bastante nem compreensão, nem ninguém para me ajudar.
Decidi incomodar tanto o Senhor à força de orações que talvez ele se resolvesse
a esclarecer meu espírito. Passei assim todo um dia rezando sem me deter um
instante; meus pensamentos apaziguaram-se e eu adormeci; então vi-me em sonhos
na cela do meu estaroste e ele explicou-me a Filocalia dizendo: “Este livro santo está cheio de uma grande
sabedoria. É um tesouro misterioso de ensinamentos sobre os desígnios secretos
de Deus. Ele não é acessível a qualquer um em qualquer parte; mas ele contém
máximas que estão ao alcance de cada um, profundas para os espíritos profundos,
simples para os simples. É por isso que vocês, pessoas simples, não devem ler
os livros dos Padres na seqüência tal como estão colocados aqui. Esta é uma
disposição conforme a teologia; mas aquele que não é instruído e que deseja
aprender a prece interior na Filocalia
deve praticar a seguinte ordem: em primeiro lugar, ler o livro do monge
Nicéforo (na segunda parte); depois o livro de Gregório o Sinaíta inteiro,
salvo os capítulos curtos; depois as três formas da prece de Simeão o Novo
Teólogo e seu tratado sobre a Fé; depois o livro de Calixto e Inácio. Nesses
textos, poderá ser encontrado o ensinamento completo da prece interior do
coração, ao alcance de todos. Se você quiser um texto ainda mais compreensível,
tome na quarta parte o modelo abreviado da prece de Calixto, patriarca de
Constantinopla.”
E eu,
praticamente segurando a Filocalia em
minhas mãos, buscava a passagem sem encontrá-la. Virando algumas páginas, o
estaroste me disse: “Veja, vou marcá-la para você!”, e tomando um pedaço de
carvão no chão, fez um risco do lado da página na qual se achava a passagem
indicada. Eu escutei todas estas palavras do estaroste e tentava fixá-las em
minha memória com firmeza e em todos os detalhes.
Despertei
e, como ainda não era dia, permaneci deitado, lembrando-me de tudo o que havia
visto em sonho e repetindo o que me havia dito o estaroste. Depois pus-me a
refletir: só Deus sabe se é a alma de meu estaroste que me aparece assim ou se
são minhas próprias idéias que tomam esta forma, por eu pensar tanto e com
tanta freqüência na Filocalia e no
estaroste! Levantei-me com esta incerteza no espírito; começava a clarear. E,
subitamente, vi sobre a pedra que me servia de mesa a Filocalia aberta na página indicada pelo estaroste e marcada
com um traço de carvão, exatamente como em meu sonho; o próprio carvão estava
ainda ao lado do livro. Fiquei assustado, porque lembrei-me que o livro não
estava lá na véspera; eu o havia colocado junto a mim, fechado, antes de dormir
e lembrava-me de que não havia nenhuma marca naquela página. Este evento deu-me
fé na aparição e certificou-me da santidade da memória de meu estaroste. Assim,
recomecei a ler a Filocalia na ordem indicada. Li uma vez e mais uma, e esta leitura
inflamou meu zelo e meu desejo de provar em ações aquilo que havia lido.
Descobri claramente o sentido da oração interior, os meios de chegar a ela e
seus efeitos; compreendi como ela regozija a alma e o coração e como podemos
distinguir se esta alegria vem de Deus, da natureza ou da ilusão.
Antes
de mais nada, procurei descobrir o lugar do coração, segundo o ensinamento de
são Simeão o Novo Teólogo. Fechando os olhos, dirigi o olhar ao meu coração,
tentando figurá-lo tal como é na parte esquerda do peito e escutando
cuidadosamente suas batidas. Comecei praticando este exercício por meia hora,
várias vezes ao dia; de início, eu não via mais do que trevas; logo meu coração
apareceu e eu senti seu movimento profundo; depois logrei introduzir em meu coração
a prece de Jesus e fazê-la sair no ritmo da respiração, conforme os
ensinamentos de são Gregório o Sinaíta, de Calixto e Inácio: para tanto,
vigiando o coração com o espírito, eu inspirava o ar e o guardava no peito,
dizendo: Senhor Jesus Cristo, e expirava
dizendo: tem piedade de mim.
Exercitei-me a princípio por uma ou duas horas, depois apliquei-me cada vez
mais amiúde a esta ocupação e, por fim, passava nela quase todo o dia. Quando
me sentia sonolento, fatigado ou inquieto, imediatamente lia na Filocalia as passagens que tratavam da atividade do coração, e
o desejo e o zelo pela prece renasciam em mim. Ao cabo de três semanas, senti
uma dor no coração, depois um torpor agradável e um sentimento de consolação e
de paz. Isto me deu mais forças para exercitar-me na prece, à qual se ligavam
todos os meus pensamentos, e comecei a sentir uma grande alegria. A partir
deste momento, experimentei de tempos em tempos diversas sensações novas no
coração e no espírito. às vezes acontecia uma espécie de efervescência em meu
coração e uma leveza, uma liberdade, uma alegria tão grande, que eu me sentia
transformado e em êxtase. Às vezes, eu sentia um amor ardente por Jesus Cristo
e por toda a criação divina. Às vezes minhas lágrimas corriam sozinhas em
reconhecimento ao Senhor que teve compaixão de mim, pecador endurecido. Outras
vezes meu espírito limitado iluminava-se a tal ponto que eu compreendia com
clareza coisas que antes não era capaz sequer de conceber. Às vezes o doce
calor de meu coração se espalhava por todo o meu ser e eu sentia com emoção a
presença indescritível do Senhor. Outras vezes eu sentia uma felicidade intensa
e profunda à invocação do nome de Jesus Cristo e compreendia o que significam
as palavras: O Reino de Deus está no vosso interior[40].
Em meio
a estas consolações benfazejas, eu observei que os efeitos da prece do coração
aparecem sob três formas: no espírito, nos sentidos e na inteligência. No
espírito, por exemplo, a doçura do amor de Deus, a calma interior, o
arrebatamento do espírito, a pureza dos pensamentos, o esplendor da idéia de
Deus; nos sentidos, o agradável calor no coração, a plenitude da doçura nos
membros, a efervescência da felicidade no coração, a leveza, o vigor da vida, a
insensibilidade às doenças e aos sofrimentos; na inteligência, a iluminação da
razão, a compreensão da sagrada Escritura, o conhecimento da linguagem da
Criação, o desligamento dos cuidados vãos, a consciência da doçura da vida
interior, a certeza da proximidade de Deus e de seu amor por todos nós[41].
Depois
de cinco solitários meses passados nestes trabalhos e nesta alegria, eu havia
me habituado de tal maneira à prece do coração que a praticava sem cessar e
enfim sentia que ela se cumpria sozinha sem nenhuma atividade de minha parte;
ela brotava em meu espírito e no meu coração não apenas no estado de vigília,
mas mesmo durante o sono, e não se interrompia nem por um segundo. Minha alma
agradecia ao Senhor e meu coração exultava numa felicidade incessante.
Chegou
o tempo do corte, chegaram os lenhadores e eu tive que deixar minha moradia
silenciosa. Tendo agradecido ao guarda florestal e recitado uma oração, beijei
este pedaço de terra no qual o Senhor quis por bem manifestar-me sua bondade,
coloquei meu saco sobre os ombros e parti. Marchei por muito tempo e por muitas
regiões até chegar a Irkutsk. A prece espontânea do coração foi meu consolo ao
longo de todo o caminho, jamais deixando de me alegrar, embora em diferentes
graus; em nenhum momento e em nenhum lugar ela me cansou, e nada pode fazê-la
diminuir. Se eu trabalhava, a prece agia por si mesma em meu coração e meu
trabalho andava mais depressa; se eu escutava ou lia algo com atenção, a oração
não cessava, e eu sentia ao mesmo tempo uma e outra coisa como se tivesse me
desdobrado e em meu corpo houvesse duas almas. Meu Deus! Como o homem é
misterioso!
O ATAQUE DO LOBO
Ó Senhor, quão variadas são as vossas
obras! Feitas, todas, com sabedoria, a terra está cheia das coisas que criastes[42]. Encontrei em meu caminho muitos casos
extraordinários. Se tivesse que contá-los todos, não terminaria antes de muitos
dias. Vejam um exemplo: numa tarde de inverno eu atravessava sozinho uma
floresta, tencionando alcançar um lugarejo que antevia a duas verstas para
descansar. De repente um grande lobo saltou sobre mim. Eu tinha nas mãos o
rosário de lã[43] de meu estaroste (eu o tinha sempre comigo). Eu
empurrei o lobo com o rosário. E acreditem, o rosário escapou-me das mãos e
enrolou-se no pescoço do animal. O lobo recuou e, saltando no meio dos
arbustos, enroscou as patas traseiras nos espinhos, enquanto o rosário
prendia-se ao ramo de uma árvore morta; o lobo debatia-se com todas as forças,
mas não conseguia livrar-se do rosário que apertava sua garganta. Persignei-me
com fé e avancei para soltar o lobo; era principalmente porque eu temia que ele
arrancasse o rosário e fugisse levando consigo este objeto tão precioso. Com
dificuldade aproximei-me e já tinha a mão no rosário quando o lobo rompeu-o e
salvou-se sem mais delongas. Assim, agradecendo ao Senhor e louvando a memória do
meu bem-aventurado estaroste, cheguei sem mais problemas à vila; dirigi-me ao
albergue e pedi para pernoitar. Entrei na habitação. Dois viajantes estavam
sentados numa mesa num canto, um mais idoso, outro maduro e corpulento, ambos
aparentemente pessoas de boa condição. Eles bebiam chá. Perguntei quem eram ao
camponês que guardava seus cavalos. Ele explicou-me que o mais velho era
instrutor e o outro assistente do juiz de paz: todos os dois de origem nobre, e
ele os estava conduzindo ao mercado que ficava a vinte verstas dali.
Depois
de ter descansado um pouco, pedi à hospedeira agulha e linha. Aproximei-me do
candeeiro e comecei a remendar meu rosário. O assistente de juiz de paz
lançou-me um olhar e disse:
-
Você deve ter
dado muitas voltas para conseguir esgarçar um rosário!
-
Não fui eu que o
estraguei, mas um lobo...
-
Ora vejam, os
lobos também fazem suas preces, respondeu o assistente rindo.
Eu
lhe contei o ocorrido com detalhes e expliquei o quanto este rosário era
precioso para mim. O assistente voltou a rir e disse:
-
Para vocês,
crédulos, sempre existem milagres! O que há de misterioso nisso? Você
simplesmente atirou-lhe uma coisa, ele assustou-se e fugiu; os cachorros e os
lobos sentem medo disto, e enroscar as patas no mato não é difícil; não é
preciso acreditar que tudo o que acontece neste mundo seja por milagre.
O
instrutor começou então a discutir com ele:
-
Não fale assim,
meu senhor! Você não é versado nestas questões... Quanto a mim, vejo na
história deste cidadão um duplo mistério, sensível e espiritual...
-
Como?, perguntou
o assistente.
-
Veja: sem ter
uma instrução muito exigente, você certamente estudou a história santa por meio
de perguntas e respostas, como nos livros escolares. Você se lembra que quando
o primeiro homem, Adão, estava ainda em estado de inocência, todos os animais
lhe eram submissos; eles se aproximavam dele com respeito e ele lhes dava os
nomes. O estaroste, a quem pertencera este rosário, era um santo; e o que é a
santidade, senão a ressurreição no homem pecador do estado de inocência do
primeiro homem, graças aos esforços e às virtudes? A alma santifica o corpo. O
rosário estava todo o tempo nas mãos de um santo; portanto, pelo contato
constante com suas mãos e com seu influxo, este objeto foi penetrado por uma
força santa, a força do estado de inocência do primeiro homem. Este é o
mistério da natureza espiritual!... Esta força é pressentida naturalmente por
todos os animais e sobretudo pelo olfato: pois o nariz é o principal órgão dos
sentidos dos animais. Este é o mistério da natureza sensível...
-
Para vocês
sábios só existem forças e histórias do gênero; mas nós vemos as coisas de
maneira mais simples: encher um copo e esvaziá-lo, é isto que nos dá forças,
disse o assistente, dirigindo-se ao armário.
-
Você é quem
sabe, respondeu o instrutor, mas, neste caso, deixe-nos nossos conhecimentos
pouco entendidos.
As
palavras do instrutor me agradaram; aproximei-me dele e lhe disse: “Permita-me
contar-lhe ainda outra coisa a respeito do meu estaroste.” Expliquei como ele
havia me aparecido em sonhos e, depois de ter-me ensinado, como havia feito uma
marca na Filocalia. O instrutor ouviu este relato com atenção. Mas o assistente
recostado num banco resmungou:
-
A verdade é que
fica-se louco por ter o nariz sempre enfiado na Bíblia. Não há o que se ver lá!
Quem é a assombração que foi riscar seus livros à noite? Você deixou cair o
alfarrábio por terra ao dormir e ele rolou nas cinzas... Este é todo o seu
milagre! Oh!, estes malucos: eu os conheço bem, meu velho, os da sua confraria!
Após
haver assim rosnado, o assistente voltou-se para o canto e adormeceu. Eu
voltei-me para o instrutor e lhe disse:
-
Se você quiser,
eu lhe mostrarei o livro que traz este traço e não uma marca de cinza.
Tirei
a Filocalia do saco e mostrei-a a ele
dizendo:
-
Fico espantado
que seja possível a uma alma incorpórea tomar um carvão e escrever...
O
instrutor observou o sinal sobre o livro e disse:
-
Este é o
mistério dos espíritos. Vou explicar-lhe. Quando os espíritos aparecem ao homem
sob uma forma corporal, eles formam seu corpo visível de luz e de ar,
utilizando para tanto os elementos dos quais foi extraído seu corpo mortal. E,
como o ar é dotado de elasticidade, a alma que se reveste dele pode agir,
escrever ou segurar objetos. Mas que livro é este? Deixe-me vê-lo.
Ele o
abriu bem no discurso e tratado de Simeão o Novo Teólogo.
-
Ah! Trata-se sem
dúvida de um livro teológico. Mas eu não o conheço...
-
Este livro, meu
pai, contém quase exclusivamente o ensinamento sobre a prece interior do
coração em nome de Jesus Cristo; ele está exposto aqui em detalhes por vinte e
cinco Padres.
-
Ah! A prece
interior! Eu sei o que é, disse o instrutor.
Eu me
inclinei quase até o chão diante dele e lhe pedi que me dissesse algumas
palavras sobre a prece interior.
-
Pois bem, diz-se
no Novo Testamento que o homem e toda a criação estão submetidos malgrado sua
vontade à vaidade e que tudo suspira e tende para a liberdade das crianças de
Deus[44]. Este misterioso movimento da criação, este desejo
inato nas almas, é a prece interior. Não se pode aprende-la, pois ela está
dentro de todos e em tudo!...
-
Mas como
adquiri-la, descobri-la e senti-la no coração? Como tomar consciência dela e
acolhe-la voluntariamente, chegar a que ela aja ativamente, regozijando,
iluminando e salvando a alma?, perguntei.
-
Não sei se os
tratados teológicos falam disto, respondeu o instrutor.
-
Mas aqui, aqui,
está tudo escrito, exclamei.
O
instrutor tomou um carvão, anotou o título da Filocalia e disse:
-
Encomendarei
este livro em Tobolsk e o lerei.
Assim
nos separamos.
Seguindo,
agradeci a Deus por minha conversação com o instrutor e roguei ao Senhor para
que permitisse ao assistente ler pelo menos uma vez a Filocalia e compreender seu sentido para o bem de sua alma.
A JOVEM DA ALDEIA
Em
outra ocasião, na primavera, cheguei a uma cidade e encaminhai-me ao padre. Era
um homem excelente que vivia só. Passei três dias com ele. Depois de haver-me
examinado durante este tempo, ele me disse:
-
Fique comigo, e
eu lhe darei um salário; preciso de um homem firme. Você notou que estamos
construindo uma nova igreja em pedra, próxima à antiga, de madeira. Não consigo
encontrar alguém que seja consciencioso para supervisionar os trabalhadores e
para permanecer na capela para recolher os donativos para a construção; vejo
que você será capaz e que esta existência lhe será muito conveniente; você
ficará só na capela para orar a Deus, existe lá um refúgio isolado no qual você
poderá permanecer. Fique, eu lhe peço, ao menos até que a igreja nova esteja
terminada.
Eu
resisti durante um tempo, mas enfim tive que ceder ante a insistência do padre.
Eu ficaria então durante o verão até o outono, e assim fui me instalar na
capela. No começo, tive muita tranqüilidade e pude exercer a oração, mas,
sobretudo nos dias de festas, vinha muita gente, uns para rezar, outros para
bailar, outros ainda para surrupiar alguma coisa da bandeja das oferendas. E
como eu costumava estar lendo a Bíblia ou a Filocalia, alguns visitantes punham-se a conversar comigo
enquanto outros me pediam que lhes lesse alguma coisa.
Depois
de algum tempo, notei que uma jovem local vinha muitas vezes à capela e
permanecia longos períodos orando. Escutando o que ela murmurava, percebi que
ela dizia estranhas orações, algumas inteiramente desfiguradas. Eu lhe
perguntei: “Quem lhe ensinou isto?” Ela me respondeu ter sido sua mãe, que era
ortodoxa, enquanto seu pai era cismático[45] da seita dos sem-padre. Esta situação me pareceu
triste e eu a aconselhei a recitar as orações corretamente, conforme a tradição
da santa Igreja: eu lhe ensinei o Pai Nosso e a Ave Maria. Ao final, eu lhe
disse: “Recite sobretudo a prece de Jesus, ela nos aproxima de Deus mais do que
todas as outras orações e com ela você obterá a salvação de sua alma.” A jovem
escutou-me com atenção e passou a agir segundo meus conselhos. E, acreditem,
algum tempo depois ela anunciou-me que estava já habituada à prece de Jesus e
que sentia desejo de repeti-la sem cessar, se possível; quando ela orava, ela
sentia doçura e alegria, e o desejo de orar ainda mais. Eu regozijei-me com
isto e aconselhei-a a orar cada vez mais, invocando o nome de Jesus Cristo.
Aproximava-se
o fim do verão; muitos visitantes da capela vinham me ver, não apenas para
pedir um conselho ou uma leitura, mas para contar suas angústias domésticas e
até para saber como encontrar objetos perdidos; visivelmente, alguns me tomavam
por uma espécie de feiticeiro. Um dia, a jovem acorreu cheia de infelicidade,
para saber o que deveria fazer. Seu pai queria casá-la contra sua vontade com
um cismático como ele e o oficiante seria um leigo.
-
É este um
casamento legal?, exclamava ela; isto não passa de um deboche! Eu vou fugir
para onde meus olhos se voltarem.
Eu
lhe disse:
-
Para onde você
vai fugir? Você será encontrada. Nos tempos que correm, você não poderá se
esconder em nenhum lugar sem papéis, chegarão facilmente até você; será melhor
rezar a Deus com zelo para que ele quebre com seus meios a resolução de seu pai
e guarde sua alma do pecado e da heresia. Isto será melhor do que a sua idéia
da fuga.
O
tempo corria, e o barulho e as distrações se tornavam para mim cada vez mais
penosos. Enfim terminou o verão; decidi abandonar a capela e retomar meu
caminho como antes. Fui procurar o padre e lhe disse:
-
Meu pai, você
conhece minhas disposições. Tenho necessidade de calma para ocupar-me da oração,
e aqui só encontro barulho e distrações. Cumpri com o que me pediu,
permanecendo aqui por todo o verão; agora, deixe-me ir e abençoe meu caminho
solitário.
O
padre não queria deixar-me ir e pressionou-me com um discurso:
-
O que o impede
de rezar aqui? Você não tem mais que permanecer na capela, e você tem seu pão
assegurado. Reze lá noite e dia se quiser; viva com Deus! Você é capaz e útil
aqui, você não diz bobagens aos visitantes, é file e honesto e assegura
ingressos à igreja de Deus. Isto é melhor aos olhos de Deus do que sua prece
solitária. Porque permanecer sempre só? Junto com as pessoas rezamos mais
alegremente. Deus não criou o homem para que ele só conheça a si mesmo, mas
para que cada qual ajude seu próximo, conduzindo-se mutuamente para a salvação,
cada um segundo sua capacidade. Veja os santos e os doutores ecumênicos, eles
estavam dia e noite em movimento e em cuidados com a Igreja, eles pregavam por
toda parte e não permaneciam na solidão escondendo-se dos irmãos.
-
Cada qual recebe
de Deus o dom que lhe convém, meu pai; muitos pregaram para as massas, e muitos
viveram na solidão. Cada um agiu segundo sua inclinação e acreditou que aquela
era a via da salvação, indicada pelo próprio Deus. Mas como você explica que
tantos santos desdenharam todas as dignidades e honras da Igreja e fugiram para
o deserto, para não serem tentados pelo mundo? Santo Isaac o Sírio abandonou
assim seus fiéis e o bem-aventurado Atanásio o Atonita deixou seu mosteiro;
eles consideravam estes lugares demasiado sedutores e acreditavam
verdadeiramente na palavra de Jesus Cristo: De que serve ao homem ganhar
o mundo, se perder sua alma[46]?
-
Mas eles eram
grandes santos, retrucou o padre.
-
Se os santos se
guardavam com tanto cuidado do contato com os homens, respondi-lhe, quanto mais
deve fazê-lo um pobre pecador!
Enfim,
eu disse adeus a este bom padre e nos separamos afetuosamente.
Ao
cabo de dez verstas, detive-me para passar a noite em uma aldeia. Havia ali um
doente quase à morte. Aconselhei sua família a fazê-lo comungar nos Santos
Mistérios de Cristo e, pela manhã, eles enviaram alguém para buscar o padre na
cidade. Eu permaneci para inclinar-me diante dos Santos Dons e orar durante
este sacramento. Sentei-me num banco diante da casa para aguardar o padre.
Subitamente, vi correr para mim a jovem que costumava rezar na capela.
-
Como você chegou
até aqui?, perguntei-lhe.
-
Estava tudo
pronto para meu casamento com o cismático, e então eu fugi.
Depois,
atirando-se aos meus pés, ela exclamou:
-
Oh!, por
piedade, leve-me consigo e encaminhe-me para um convento; eu não quero me
casar, eu viverei no convento recitando a prece de Jesus. Lá eles o escutarão e
me aceitarão.
-
Eh!, disse eu,
para onde quer que eu a encaminhe? Eu não conheço nenhum convento por aqui, e
não posso levá-la comigo se você não tem um passaporte. Você não poderá
descansar em parte alguma. Logo a descobrirão; você será levada de volta e
punida por vagabundagem. Volte para sua casa e ore a Deus; se você não quer
mesmo se casar, finja alguma incapacidade. É o que se chama uma mentira
piedosa; foi assim que agiu a santa mãe de Clemente, a bem-aventurada Marina,
que conseguiu sua salvação num mosteiro de homens.
Enquanto
estávamos falando assim, vimos quatro homens numa carroça, e eles galoparam
diretamente para nós. Eles agarraram a moça, a colocaram na carroça e a
despacharam com um deles; os outros três amarraram-me as mãos e me levaram à
cidade aonde passara o verão. Diante de minhas explicações, eles respondiam
gritando: “Você vai ver, santinho, vai aprender a seduzir as moças!” Pela
tarde, eles me conduziram à cadeia, colocaram-me grilhões nos pés e me
trancaram para ser julgado na manhã seguinte. O padre, ao saber que eu estava
na prisão, veio me visitar; ele me levou algo para comer, consolou-me e disse
que tomaria minha defesa e declararia enquanto confessor que eu não possuía as
tendências que me atribuíam. Ele permaneceu mais um pouco comigo e se foi.
Ao
aproximar-se a noite, o oficial de justiça local passou pela cidade e
contaram-lhe o caso. Ele ordenou que se convocasse a assembléia comunitária e
que eu fosse levado ao tribunal de justiça. Uma vez lá, permanecemos em pé à
espera. Subitamente chegou o oficial de justiça, já bastante inflamado; ele
sentou-se à mesa tirando o chapéu e gritou:
-
Eh! Epifânio,
esta jovem, sua filha, não levou nada de sua casa?
-
Nada, meu
senhor!
-
Ela não fez
nenhuma besteira com este idiota?
-
Não, meu senhor!
-
Então, o negócio
está julgado e eu decido: faça o que quiser com sua filha; e este folgazão, nós
lhe pediremos que desapareça amanhã, depois que o tivermos solidamente
corrigido para que ele nunca mais ponha os pés aqui. Está feito!
Com
estas palavras, o oficial levantou-se e foi dormir; quanto a mim, levaram-se de
volta à prisão. Logo de manhãzinha, vieram dois cidadãos[47] que me chicotearam e eu fui liberado; fui embora,
agradecendo ao Senhor por ter permitido que eu sofresse em seu nome. Isto me
consolou e incitou-me ainda mais à oração.
Todos
estes eventos não me angustiaram nem um pouco; era como se eles acontecessem
com outra pessoa e eu fosse um espectador; mesmo quando me chicotearam,
consegui suportar; a prece, alegrando meu coração, não me permitia prestar
atenção em outra coisa.
No
fim de umas quatro verstas, encontrei a mãe da jovem, que voltava do mercado.
Ela se deteve e me disse:
Depois
ela me deu pão e um doce, e eu retomei o caminho.
O
tempo estava seco e eu não tinha vontade de pernoitar numa vila; vi dois montes
de feno na floresta e ali me instalei para passar a noite. Adormeci e me vi
sonhando que seguia pelo caminho lendo os capítulos de santo Antônio o Grande[49] na Filocalia.
Subitamente, o estaroste surgiu e me disse: “Não é isto que você deve ler”, e
indicou-me o trigésimo quinto capítulo de João de Cárpatos, no qual está
escrito: “às vezes o discípulo é entregue à desonra e suporta provas por
aqueles a quem ele ajudou espiritualmente.” Ele mostrou-me também o capítulo 41
onde está dito: “Todos aqueles que se entregam mais ardentemente à oração são
vítimas de tentações terríveis e esgotantes.”
Então
ele me disse:
-
Tome coragem e
não se deixe abater! Lembre-se das palavras do Apóstolo: Aquele que está
em vós é maior do que aquele que está no mundo[50]. Agora você pode ver por experiência própria que não
existe tentação que esteja acima das forças do homem. Pois com a
tentação Deus prepara também uma saída feliz[51]. É pela esperança no auxílio do Senhor que se
sustentaram os santos que não apenas passaram a vida a rezar, mas que
procuraram, por amor, ensinar e esclarecer os outros. Veja o que diz a respeito
santo Gregório de Tessalônica[52]: “Não nos basta orar sem cessar em nome de Jesus
Cristo conforme o mandamento divino, mas é preciso expor este ensinamento a
todos, monges ou leigos, inteligentes e simples, homens, mulheres e crianças, a
fim de despertar neles o zelo pela prece interior.” O bem-aventurado Calixto
Telicoudas exprime-se do mesmo modo: “A atividade espiritual (ou seja, a prece
interior), diz ele, o conhecimento contemplativo e os meios para elevar a alma
não devem ficar guardados apenas em si, mas é preciso comunicá-los pela escrita
ou por discursos para o bem e o amor de todos. E a palavra de Deus declara que o
irmão ajudado por seu irmão é como uma cidadela grande e forte[53]. É preciso apenas fugir com todas as forças da
vaidade e vigiar para que as boas sementes do ensinamento divino não sejam
levadas pelo vento.”
Ao
despertar, senti em meu coração uma grande alegria e novas forças na alma. E
assim segui meu caminho.
CURAS MARAVILHOSAS
Algum
tempo depois, tive outra aventura. Se me permitem, vou contá-la.
Num
belo dia, 24 de Março, senti uma necessidade insuperável de comungar com os
santos mistérios de Cristo no dia consagrado à Mãe de Deus em lembrança de sua
divina Anunciação. Perguntei se havia uma igreja pelos arredores; disseram-me
que havia uma a trinta verstas.
Caminhei
o resto do dia e por toda a noite para chegar na hora das matinas. O tempo
estava dos piores, com neve, chuva, um forte vento e muito frio. O caminho
atravessava um regato e eu não havia dado mais que alguns passos quando o gelo
partiu-se sob meus pés e eu caí na água até a cintura. Cheguei todo estropiado
para as matinas, que escutei assim como à missa, durante a qual Deus permitiu
que eu comungasse.
Para
passar este dia em paz, sem nada que perturbasse a alegria espiritual, pedi ao
guardião que me deixasse ficar até o dia seguinte na cabana da guarda. Passei
todo este dia numa alegria indizível e na paz do coração; estava deitado no
banco desta cabana mal aquecida como se estivesse repousando sobre o seio de
Abraão: a prece agia com força. O amor por Jesus Cristo e pela Mãe de Deus
percorria meu coração em ondas benfazejas e mergulhava minha alma num êxtase
consolador. Como chegasse a noite, senti subitamente uma forte dor nas pernas e
lembrei-me de que elas estavam molhadas. Mas, repelindo esta distração, voltei
a mergulhar na prece e me senti menos mal. Pela manhã, quando quis me levantar,
não podia mover as pernas. Elas estavam sem forças e tão moles como um trapo de
pano; o guarda me empurrou para fora do banco e eu passei dois dias sem me
mover. No terceiro dia, o guarda me expulsou da cabana dizendo: “– Se você morre aqui, ainda terei que correr e me
ocupar com você.” Arrastei-me sobre as mãos até o adro da igreja, onde me
deitei. Permaneci assim por quase dois dias. As pessoas que passavam não davam
a menor atenção nem a mim nem às minhas súplicas.
Enfim,
um cidadão aproximou-se de mim e começou a inquirir-me. Depois de um certo
tempo, ele me disse:
-
O que você pode
me dar? Eu vou curá-lo. Já tive exatamente a mesma coisa e conheço o remédio.
-
Eu não tenho
nada para lhe dar, respondi-lhe.
-
E o que há no
seu saco?
-
Nada senão pão
seco e livros.
-
Muito bem, você
trabalhará para mim durante o verão e eu o curarei.
-
Tampouco posso
trabalhar. Como vê, só tenho um braço válido.
-
Então o que você
sabe fazer?
-
Nada, senão ler
e escrever.
-
Ah! escrever!
Pois bem, você ensinará meu filho a escrever, ele sabe ler um pouco e quero que
ele aprenda a escrever. Mas os professores cobram caro, querem vinte rublos
para ensinar toda a escrita.
Fiquei
assim combinado com ele e, com a ajuda do guarda, eles me transportaram à sua
casa, onde me puseram em um velho banho[54] no fundo do quintal.
Então
ele começou a me curar: juntou pelos campos, nos caminhos e nos fossos de lixo
uma grande quantidade de ossos de animais, de pássaros e de todo tipo; ele os
lavou, quebrou-os em pequenos pedaços com uma pedra e colocou tudo numa grande
panela; ele a tampou com uma tampa que tinha um pequeno orifício e emborcou a
panela sobre um pote que ele havia enterrado no chão. Ele recobriu
cuidadosamente o fundo da panela com uma espessa camada de argila e a cobriu de
madeiras que pôs a queimar durante vinte e quatro horas. Enquanto dispunha a
lenha para o fogo, ele disse: “Tudo isto vai formar uma graxa de ossos.” No dia
seguinte, ele desenterrou o pote, para onde havia escorrido pelo orifício da
tampa da panela cerca de um litro de um líquido espesso, avermelhado, oleoso e
cheirando a carne fresca; os ossos ficaram na panela, e de escuros e podres que
eram tinham agora uma cor tão branca e transparente quanto o nácar ou as
pérolas. Cinco vezes ao dia ele friccionava minhas pernas com este líquido. E
acreditem, no dia seguinte eu senti que já podia mover os dedos; no terceiro
dia eu podia dobrar as pernas, e no quinto eu me mantinha em pé e caminhava no
pátio apoiado num bastão. Em uma semana, minhas pernas tinham voltado ao
normal. Eu agradeci a Deus por isso e disse para mim mesmo: a sabedoria de Deus
aparece em suas criaturas! Ossos ressecados, ou apodrecidos, quase se tornando
terra, ainda guardavam em si a força vital, uma cor e um odor; eles podiam
exercer uma ação sobre corpos vivos, aos quais devolveram a vida! É uma
garantia da Ressurreição futura. Se eu pudesse contar isto ao guarda florestal
com quem vivi, e que duvidava da Ressurreição dos corpos!
Uma
vez curado, comecei a ocupar-me do menino. Como modelo, escrevi a prece de
Jesus e fiz com que a copiasse, mostrando-lhe como formar letras harmoniosas.
Era muito repousante para mim, porque durante o dia ele trabalhava com o
intendente e só vinha ver-me enquanto ele dormia, ou seja bem cedo pela manhã.
O rapaz era atento e logo escrevia quase tudo corretamente.
Ao
vê-lo escrever, o intendente perguntou:
-
Quem o está
ensinando?
O
menino disse que era um peregrino maneta que vivia com eles na velha casa de
banhos. O intendente, curioso – era um polonês – veio ver-me e me encontrou
lendo a Filocalia. Ele conversou um
pouco comigo e disse:
-
O que você está
lendo?
Mostrei-lhe
o livro.
-
Ah! É a Filocalia, disse ele. Eu vi este livro com nosso cura num
tempo em que morei em Vilna. Mas eu ouvi falar que ele contém estranhas
receitas e procedimentos de oração, inventadas pelos monges gregos a exemplo
dos fanáticos da Índia e de Bukhara, que enchem seus pulmões e acreditam
estupidamente, quando chegam a sentir qualquer cócega no coração, que esta
sensação natural é uma prece enviada por Deus. É preciso rezar com
simplicidade, para cumprir o dever para com Deus; ao levantarmos, devemos
recitar o Pai Nosso como ensinou o Cristo; e estamos quites por toda a jornada.
Mas ficar repetindo o tempo todo a mesma coisa é arriscar-se a enlouquecer e
inutilizar o coração.
-
Não fale assim
deste santo livro, caro senhor. Não foram simples monges gregos que o
escreveram, mas antigos e santos personagens que a sua Igreja também venera,
como Antônio o Grande, Macário o Grande, Marcos o Asceta, João Crisóstomo e
outros. Os monges da Índia e de Bukhara tomaram emprestada a técnica da prece
do coração, mas a desfiguraram e danificaram, como me contou meu estaroste. Na Filocalia, todos os ensinamentos sobre a prece interior são
extraídos da Palavra divina, da santa Bíblia, na qual Jesus Cristo, ao mesmo
tempo em que ordenava dizer o Pai Nosso, também afirmou que era preciso orar
sem cessar, dizendo: Ama o Senhor teu Deus com todo o teu coração e todo
o teu espírito[55]; observai, vigiai e orai[56]; vós permanecereis em mim e eu em vós[57]. Os santos Padres, citando o testemunho do rei Davi
nos salmos: Provem e vejam como o Senhor é bom[58], interpretam-no dizendo que o cristão deve fazer
tudo para conhecer a doçura da oração, deve buscar a consolação sem cessar e
não contentar-se em recitar uma só vez o Pai Nosso. Espere, eu vou ler-lhe o
que dizem os santos Padres daqueles que não tentam estudar a benfazeja prece do
coração. Eles declaram que eles cometem um triplo pecado, pois, em primeiro
lugar, eles se colocam em contradição com as santas Escrituras; em segundo,
eles não admitem que possa haver para a alma um estado superior e perfeito:
contentando-se com as virtudes exteriores, eles ignoram a fome e a sede de
justiça e privam-se da beatitude em Deus; e em terceiro, ao considerar suas
virtudes exteriores, eles caem freqüentemente no auto contentamento e na
vaidade.
-
Você leu algo de
bastante elevado, disse o intendente; mas como nós, os leigos, poderemos seguir
esta via?
-
Espere, eu vou
ler de que modo os homens de bem puderam, embora leigos, aprender a oração
constante. Tomei na Filocalia o tratado
de Simeão o Novo Teólogo sobre o jovem Jorge[59] e me pus a ler.
Isto
agradou o intendente que me disse:
-
Dê-me este livro
para que eu o leia nos momentos livres.
-
Se você quiser,
posso emprestá-lo por um dia, não mais do que isto, pois eu o leio sem parar e
não posso passar sem ele.
-
Mas você poderá
ao menos copiar-me esta passagem; eu lhe darei dinheiro.
-
Não tenho
necessidade de dinheiro, mas a copiarei com prazer, esperando que Deus lhe dê o
zelo pela oração.
Imediatamente,
copiei a passagem que havia lido. Ele a leu para sua esposa e os dois gostaram
muito. A partir deste dia, eles mandavam buscar-me de tempos em tempos. Eu
chegava com a Filocalia; eu lia, eles escutavam e tomávamos chá. Um dia, eles
me convidaram para jantar. A esposa do intendente, uma senhora amável, estava
conosco e comia um peixe grelhado. Subitamente, ela engasgou-se com uma
espinha; malgrado nossos esforços, não conseguimos livrá-la, ela feriu-se na
garganta e duas horas depois ela teve que deitar-se. Foram enviadas pessoas
para buscar um médico a trinta verstas de distância, e eu voltei para minha
casa entristecido.
Durante
a noite, como estava com o sono muito leve, ouvi de repente a voz do meu
estaroste, sem ver ninguém; a voz me dizia: “Seu patrão o curou, e você não
pode fazer nada pelo intendente? Deus nos ordenou compartilhar as infelicidades
do próximo”. Respondi que o faria com o maior prazer, mas como, se não conhecia
nenhum remédio? “Eis o que você deve fazer: ela sempre teve uma violenta
repulsa por óleo de rícino; só com o cheiro, ela sente náuseas; então dê-lhe
uma colherada de óleo de rícino, ela vomitará, a espinha sairá, o óleo
suavizará o ferimento de sua garganta e ela estará curada.” Perguntei então
como fazê-la beber, já que sua repulsa era tão grande? “Peça ao intendente que
segure sua cabeça e entorne o líquido em sua boca.”
Acordei
do cochilo e corri para o intendente, contando-lhe tudo em detalhe. Ele me
disse:
-
De que servirá o
óleo? Ela já está febril, delira e seu pescoço está todo inchado. Mas não custa
tentar; se o óleo não fizer bem, tampouco fará mal.
Ele
encheu um pequeno copo com óleo de rícino e conseguimos fazê-la beber.
Imediatamente, ele sofreu um forte vômito e expeliu a espinha[60] com um pouco de sangue; ela sentiu-se melhor e
adormeceu profundamente.
Na
manhã seguinte, fui saber das novidades e a encontrei com seu marido tomando um
chá; eles estavam espantados com a cura e sobretudo pelo que me havia sido dito
em sonhos sobre sua aversão ao óleo de rícino, pois jamais haviam comentado
isto com ninguém. Depois chegou o médico; o intendente contou-lhe como ela
havia sido curada e eu contei como eu mesmo fora curado das pernas. O médico
declarou:
-
Estes dois casos
não são surpreendentes: trata-se de uma força da natureza que agiu nos dois
casos, mas eu vou anotá-los como registro; ele tirou um lápis do bolso e
escreveu algumas palavras num caderno.
Logo
espalhou-se a história de que eu era um adivinho, um curador e um mágico; de
toda parte vinham consultar-me, traziam-me presentes e começavam a venerar-me
como a um santo. Ao cabo de uma semana, refleti sobre tudo isto e tive medo de
cair na vaidade e na dissipação. E na noite seguinte, deixei a aldeia em
segredo.
CHEGADA A IRKUTSK
Assim,
mais uma vez eu avançava sobre o caminho solitário e me sentia tão leve como se
uma montanha tivesse sido t irada das minhas costas. A prece consolava-me cada
vez mais; às vezes meu coração borbulhava com um amor infinito por Jesus Cristo
e ondas benfazejas deste maravilhoso borbulhar espalhavam-se por todo meu ser.
A imagem de Jesus Cristo estava de tal modo gravada em meu espírito que ao
pensar nos eventos do Evangelho era como se eu os tivesse vendo diante dos meus
olhos. Eu estava emocionado e chorava de alegria, e às vezes sentia em meu
coração tamanha felicidade que não consigo descrever. Eventualmente eu passava
três dias longe de qualquer habitação humana e, extasiado, sentia-me só sobre a
terra, miserável pecador diante do Deus compassivo e amigo dos homens. Esta
solidão fazia minha felicidade e a doçura da prece era muito mais sensível do
que no contato com os homens.
Enfim
cheguei a Irkutsk. Após me haver inclinado diante das relíquias de santo
Inocêncio, perguntei-me aonde iria a seguir. Não tinha vontade de permanecer
muito tempo na cidade, que era muito populosa. Eu caminhava pela rua
refletindo. Subitamente encontrei um comerciante local, que me deteve e disse:
-
Você é um
peregrino? Porque não vem à minha casa?
Chegamos
à sua rica mansão. Ele me perguntou quem eu era e eu lhe contei minha viagem.
Depois ele me disse:
-
Você deve ir a
Jerusalém. Lá existe uma santidade que nada pode comparar!
-
Irei com
alegria, respondi, mas não sei como pagar a travessia, pois é preciso muito
dinheiro.
-
Se você quiser,
eu lhe indicarei um meio, disse o comerciante; no ano passado, eu enviei para lá
um ancião amigo nosso.
Caí a
seus pés e ele me disse:
-
Escute, eu lhe
darei uma carta para meu filho que está em Odessa e comercia com
Constantinopla; existem muitos navios, ele o fará chegar a Constantinopla e, de
lá, seus escritórios pagar-lhe-ão a viagem
até Jerusalém. Não é tão caro.
Diante
dessas palavras, fiquei cheio de alegria, agradeci muitíssimo meu benfeitor e
agradeci sobretudo a Deus que manifestava um amor tão paternal para comigo,
pecador endurecido, que não faço bem nem a mim nem a ninguém, comendo
inutilmente o pão dos outros.
Permaneci
por três dias com este generoso comerciante. Ele me entregou uma carta para seu
filho e assim eu pretendia seguir para Odessa na esperança de alcançar a cidade
santa de Jerusalém. Mas eu não sabia se o Senhor me permitiria inclinar-me
diante de seu sepulcro vivificante.
TERCEIRO
RELATO
Antes
de minha partida de Irkutsk, procurei o pai espiritual com quem já tinha tido
algumas conversações e lhe disse:
-
Aqui estou, e
brevemente estarei a caminho de Jerusalém; vim dizer-lhe adeus e agradecer-lhe
por sua caridade cristã para comigo, miserável peregrino.
Ele
me disse:
-
Que Deus
abençoes seu caminho. Mas você nada me contou sobre si, quem é você e de onde
vem. Já ouvi muitas histórias de suas viagens; gostaria de conhecer sua origem
e sua existência até o dia em que você iniciou sua vida errante.
-
Contar-lhe-ei
com prazer, disse eu. Não é um história muito longa.
A VIDA DO PEREGRINO
Nasci
em uma aldeia da província de Orel. Depois que meus pais morreram, restamos
apenas meu irmão mais velho e eu. Ele tinha dez anos e eu estava com três anos.
Nosso avô nos recolheu para nos criar. Era um velho senhor honrado e de bom
trato, que mantinha um albergue à beira da estrada e, como ele era muito bom,
muitos viajantes detinham-se ali. Assim fomos viver com ele; meu irmão era
muito vivo e andava todo o tempo pela aldeia, enquanto eu permanecia mais tempo
com meu avô. Nos dias de festa, ele nos levava à igreja, e em casa ele
freqüentemente lia a Bíblia, esta que trago comigo. Meu irmão cresceu e começou
a beber. Eu tinha sete anos; um dia, eu estava deitado com ele sobre a poêle[61], ele me empurrou e me fez cair. Eu estropiei meu
braço esquerdo e, desde então, não posso mais me servir dele, que acabou por
ressecar.
Meu
avô, vendo que eu não poderia empregar-me em trabalhos de campo, resolveu
ensinar-me a ler e, como não tínhamos uma gramática, ele se servia da Bíblia:
ele me mostrava as letras e me obrigava a soletrar as palavras e a anotar as
letras. Desta maneira, não sei bem como, à força de repetir para ele, acabei
aprendendo a ler. Mais tarde, quando ele já não enxergava bem, ele me fazia ler
a Bíblia em voz alta e me corrigia. À hospedaria vinha sempre um oficial de
justiça, que tinha uma bela letra e que eu gostava de ver escrevendo. Por minha
própria conta eu comecei a formar palavras seguindo seu exemplo. Ele então
indicou-me como fazer, deu-me papel, tinta e preparou-me algumas penas. Assim
eu aprendi também a escrever. Meu avô ficou
contente com isso e me disse:
-
Deus lhe deu o
conhecimento das letras, e você se tornará um homem. Agradeça ao Senhor e reze
com muita freqüência.
Nós
íamos sempre aos serviços da igreja e em casa também rezávamos constantemente;
ele me fazia repetir: Tem piedade de mim, Senhor, e meu avô e minha avó inclinavam-se quase até o chão ou
ajoelhavam-se. Quando cheguei aos
dezessete anos minha avó morreu. Meu avô me disse:
-
Cá estamos sem a
senhora da casa; como vamos nos arrumar sem uma mulher? Seu irmão mais velho
não serve para nada, vou dar um jeito de casar você.
Eu
recusei, devido à minha enfermidade, mas meu avô insistiu e acabaram por
casar-me com uma jovem boa e séria. Ela tinha vinte anos. Um ano se passou e
meu avô caiu doente, quase para morrer. Ele me chamou, despediu-se de mim e
disse:
-
Eu lhe deixo a
casa e tudo o que eu tenho; viva como se deve, não engane as pessoas, reze a
Deus acima de tudo; é dele que tudo vem. Não coloque sua esperanças em nada
senão em Deus, vá à igreja, leia a Bíblia e lembre-se de nós em suas orações.
Aqui estão mil rublos de prata, guarde-os, não os gaste por qualquer coisa, mas
não seja avaro, dê aos mendicantes e às igrejas de Deus.
Ele
morreu e eu o enterrei. Meu irmão ficou com inveja por eu ter recebido o
albergue como herança: ele me fez ameaças e o Inimigo o conduziu tão bem que
ele resolveu me matar. Numa noite em que dormíamos e não tínhamos hóspedes ele
penetrou na despensa e provocou um incêndio depois de pegar todo o dinheiro que
havia no cofre. Nós despertamos quando a casa já estava tomada pelas chamas e
mal tivemos tempo de pular pela janela, apenas com a roupa do corpo.
Nossa
Bíblia estava na mesa de cabeceira e nós a trouxemos conosco. Nós víamos nossa
casa queimar e dizíamos: Graças a Deus, salvamos nossa Bíblia; assim, podíamos
ao menos nos consolar. Deste modo, nossos bens foram queimados e meu irmão
fugiu da província. Mais tarde, bêbado, ele vangloriou-se disto e assim
soubemos ter sido ele que roubou o dinheiro e pôs fogo no edifício.
Ficamos
nus e sem nada, como verdadeiros mendigos; mal e mal, emprestando daqui e dali,
conseguimos uma pequena cabana e passamos a viver como pobres diabos. Minha
esposa não tinha rival na arte de fiar, tecer e costurar. Ela conseguia
encomendas e trabalhava dia e noite para nos alimentar. Devido ao meu braço, eu
não conseguia sequer trançar sandálias de corda. Normalmente, ela fiava e tecia
enquanto eu, ao seu lado, lia a Bíblia; ela escutava e às vezes começava a
chorar. Quando eu lhe perguntava:
-
Porque você
chora? Graças a Deus, vamos levando, ela respondia:
-
Fico emocionada
porque na Bíblia tudo está tão bem escrito.
Nós
sempre nos lembrávamos da recomendação de meu avô, jejuávamos muitas vezes,
líamos a cada manhã o hino acatista[62] e à tarde fazíamos cada qual mil saudações diante
das imagens para não cair em tentação. Assim vivemos tranqüilamente por dois
anos. Mas veja o mais espantoso: nós não sabíamos nada da prece interior feita
no coração, nunca ouvíramos falar dela, rezávamos apenas com a língua ,
fazíamos nossas reverências como tolos, e no entanto, o desejo de rezar estava
presente, esta longa oração exterior não nos parecia difícil, nos a cumpríamos
com prazer. Sem dúvida tinha razão o instrutor que me disse existir no interior
do homem uma oração misteriosa que ninguém sabe como se produz, mas que incita
cada um a rezar como puder ou souber.
Depois
de dois anos nesta vida, minha esposa teve uma febre muito alta e, no nono dia,
depois de comungar, ela morreu. Eu fiquei só, completamente só e não tinha o
que fazer; não me restava mais que sair a mendigar pelo mundo, mas eu tinha
vergonha de pedir esmolas; ademais , eu estava tão infeliz pensando em minha
esposa que não sabia sequer onde me abrigar. Quando voltei à cabana e vi um de
seus vestidos ou seu lenço de cabeça, comecei a soluçar e tombei inconsciente.
Para viver assim naquela casa, eu não poderia suportar a angústia, e assim
vendi a cabana por vinte rublos e distribui as minhas roupas e de minha esposa
entre os pobres. Devido à minha enfermidade deram-me um passaporte perpétuo;
tomei minha Bíblia querida nas mãos e saí pelo mundo, seguindo aonde meu olhar
me levasse.
Chegando
à estrada, eu me perguntei: onde ir agora? Pensei em ir primeiro a Kiev,
prostrar-me diante dos santos de Deus e lhes pedir ajuda em meu sofrimento. A
partir do momento em que tomei esta decisão, senti-me melhor e cheguei a Kiev,
aliviado. Desde então fazem vinte anos que caminho sem me deter; visitei muitas
igrejas e mosteiros, mas agora caminho sobretudo pelas estepes e pelos campos.
Não sei se o Senhor me permitirá chegar até a santa Jerusalém. Se for a vontade
de Deus, chegará talvez o dia de enterrar lá meus ossos pecadores.
-
E que idade tem
você?
-
Trinta e três
anos.
A
idade de Cristo!
QUARTO RELATO
Mas, para mim, a felicidade é me aproximar de
Deus, é pôr minha
confiança no Senhor a fim de narrar as vossas maravilhas diante das portas da filha de Sião[63].
O
provérbio russo tem razão, disse eu, ao voltar ao meu pai espiritual: o homem
põe e Deus dispõe. Eu pensei que partiria hoje para a cidade santa de
Jerusalém, mas tudo se inverteu: um acontecimento imprevisto me retém aqui
ainda por dois ou três dias. Não pude me impedir de vir vê-lo para contar-lhe e
pedir seu conselho a propósito. Eis o que aconteceu.
Eu já
havia dito adeus a todos e, com a ajuda de Deus, retomei o caminho; ia saindo
da cidade, passando pelas últimas casas, quando divisei um velho peregrino que
não via há três anos. Saudamo-nos e ele me perguntou para onde eu ia. Eu lhe
respondi:
-
Se Deus quiser,
vou para a velha Jerusalém.
-
Ora, bem!,
respondeu ele, eu tenho um ótimo companheiro para você.
-
Misericórdia!,
disse-lhe eu. Você não sabe que eu nunca procuro companhia e que viajo sempre
só?
-
Sim, mas ouça um
pouco: eu sei que este irá lhe convir muito bem. Tudo irá bem para ele, se
seguir com você, e para você, se for com ele. O pai do proprietário desta casa,
aonde trabalho, fez voto de ir a Jerusalém; você não terá problemas em ir com
ele. É um comerciante daqui, um bom velho que, além do mais, é completamente
surdo. Você pode gritar quanto quiser, ele não ouve nada; quando querem
pedir-lhe alguma coisa, é preciso escrever num pedaço de papel. Ele está sempre
quieto, e não vai incomodá-lo durante o caminho. Mas você será indispensável a
ele no trajeto. Seu filho lhe deu um cavalo e uma carroça, que ele venderá em
Odessa. O velho quer marchar a pé, mas colocaremos sua bagagem e alguns
donativos para o Sepulcro do Senhor na carroça. Você pode colocar lá seu
saco... Agora, reflita. Você acha que podemos deixar ir assim, inteiramente só,
um velho completamente surdo? Nós procuramos um condutor por toda parte, mas
eles pedem muito caro, e depois é perigoso deixá-lo partir com um desconhecido,
pois ele leva dinheiro e objetos preciosos. Aceite, irmão, isto será um bem;
aceite para glória de Deus e por amor ao próximo. Quanto a mim, darei garantias
por você e meus patrões ficaram felizes; são ótimas pessoas e gostam muito de
mim. Faz dois anos que estou com eles.
Depois
de conversarmos assim diante da porta da casa, ele me fez entrar para conhecer
os patrões e vi que era uma família honrada; aceitei a proposta. Decidimos
partir dois dias após o Natal, se Deus quiser, após assistir a divina liturgia.
Foram
estes os acontecimentos imprevistos que se produziram nos caminhos da vida! Mas
é sempre Deus e a divina Providência que agem sobre nossas ações e nossas
intenções, como está escrito: “Porque é Deus quem, segundo o seu
beneplácito, realiza em vós o querer e o executar[64].”
Meu
pai espiritual me disse:
-
Eu me regozijo
cordialmente, irmão amado, que o Senhor me tenha assim permitido revê-lo. E
como você está livre, eu o segurarei um pouco e você me contará alguns de seus
encontros ao longo de sua vida errante. Terei prazer em escutar seus relatos.
-
Farei com
alegria, respondi-lhe, e comecei a contar.
Houveram
tanto coisas boas como más; não há como contar tudo, e muitas coisas
perderam-se da memória, pois eu sempre tentei manter a lembrança daquilo que
conduzia minha alma preguiçosa à oração; todo o resto eu raramente evoquei, ou,
para melhor dizer, eu me impus esquecer o passado, segundo o ensinamento do
apóstolo Paulo, que disse: Esquecendo o que está atrás e voltando-me
exclusivamente para o que está adiante, eu corro direto ao objetivo[65]. E meu bem-aventurado estaroste me dizia que os
obstáculos à oração podem vir da direita e da esquerda[66], ou seja, se o inimigo não pode desviar a alma com
pensamentos vãos e imagens culposas, ele faz reviver na memória as lembranças
edificantes ou as belas idéias, a fim de arrancar a prece do espírito, que ele
não pode suportar. Isto é chamado desvio da direita: a alma, distraindo-se da
conversação com Deus, entra numa prosa deliciosa consigo mesma ou com as
criaturas. Ele também me disse que, no momento da prece, não devemos admitir no
espírito nem mesmo o mais belo e sublime pensamento; e se, no final do dia,
percebemos que passamos mais tempo meditando ou em atividades edificantes do
que pura e simplesmente orando, é preciso considerar isto como uma imprudência
ou como uma avidez espiritual egoísta, sobretudo entre os iniciantes, para quem
o tempo empregado na oração deve superar
o tempo consagrado às demais atividades piedosas.
Mas
nem tudo pode ser esquecido. Algumas lembranças imprimem-se tão profundamente
na memória que permanecem vivas sem que as evoquemos, como por exemplo esta de
uma piedosa família junto à qual Deus me permitiu passar alguns dias.
UMA FAMÍLIA ORTODOXA
Quando
atravessava a província de Tobolsk, passei um dia por uma pequena vila. Eu
quase já não tinha pão, de modo que procurei uma casa em que pedir um pouco. O
dono da casa me disse:
-
Você chegou em
boa hora, minha esposa acabou de retirar o pão do forno. Tome este bocado
quentinho e reze por nós.
Enquanto
agradecia, coloquei o pão no saco; a dona da casa me viu e disse:
-
Que pobre saco
você tem aí, ele está todo puído, eu vou lhe dar outro.
E ela
me trouxe um bom e sólido saco. Eu lhes agradeci do fundo do coração e parti.
Na saída da aldeia, pedi um pouco de sal no armazém e o comerciante deu-me um
saquinho. Fiquei feliz e agradeci a Deus que me dirigiu a pessoas tão decentes.
-
Eis que me vejo
tranqüilo por uma semana, disse a mim mesmo. Poderei dormir sem preocupações.
Minha alma bendiga o Senhor[67]!
Eu já
estava a cinco verstas da vila quando divisei uma aldeia de aparência rica com
uma igreja em madeira, pequena mas com o exterior bem pintado e delicadamente
decorada. O caminho passava perto e tive vontade de prosternar-me diante do
templo de Deus. Subi as escadas e fiz uma prece.
Na
pradaria atrás da igreja, duas crianças brincavam; deveriam ter uns cinco ou
seis anos, Pensei comigo que apesar do seu ar refinado, deviam ser filhos do
padre. Terminada a oração, levantei-me para ir. Não havia dado dez passos
quando ouvi gritarem atrás de mim:
-
Gentil mendigo!
Gentil mendigo! Espere!
Eram
as crianças que gritavam e corriam para mim; um menino e uma menina; eu me
detive e, acorrendo, eles me tomaram pela mão:
-
Vamos até a
mamãe. Ela ama os mendigos.
-
Eu não sou um
mendigo, eu sou um viajante.
-
O que é que tem
neste saco?
-
É meu pão para a
viajem.
-
Não tem
importância, venha conosco, mamãe lhe dará dinheiro para a viajem.
-
E onde está a
sua mamãe?, perguntei-lhes.
-
Logo ali, atrás
da igreja, para lá das árvores.
Elas
me fizeram entrar num jardim maravilhoso, no meio do qual vi um grande solar;
entramos num vestíbulo. Como tudo era de bom gosto e bem arrumado! Subitamente,
a senhora veio a nós.
-
Como estou
feliz! De onde nos enviou Deus o senhor? Sente-se, sente-se meu caro!
Ela
mesma tomou meu saco, colocou-o sobre uma mesinha e me fez sentar em uma
cadeira extremamente macia.
-
Quer comer?
Tomar chá? Precisa de alguma coisa?
-
Eu agradeço
humildemente, respondi-lhe, mas tenho do que comer dentro do saco e quanto ao
chá, posso bebê-lo, mas não tenho o hábito, porque sou camponês; sua
amabilidade e sua gentileza são mais preciosas que uma refeição; pedirei a Deus
que os abençoe por esta hospitalidade evangélica.
Ao
dizer estas palavras, senti um forte desejo de voltar à minha solidão. A prece
fervilhava em meu coração e eu tinha necessidade de calma e de silêncio para
deixar esta chama crescer livremente e para esconder os sinais exteriores da
prece, lágrimas, suspiros, movimentos dos olhos e dos lábios.
Assim,
levantei-me e disse:
-
Eu peço perdão,
mas preciso partir. Que o Senhor Jesus Cristo esteja consigo e com estas duas
adoráveis crianças.
-
Ah! Não! Deus
não permita que se vá, não o deixarei partir. Meu marido deve retornar da cidade
esta tarde, ele é juiz do tribunal do distrito. Ele ficará feliz em vê-lo! Ele
considera cada peregrino como um enviado de Deus. Ademais, no próximo domingo,
você rezará conosco no ofício, e o que Deus nos enviar, comeremos juntos. Aqui,
nas festas, recebemos sempre no mínimo trinta pobres mendigos, irmãos de
Cristo. E você ainda não nos disse nada sobre si, nem de onde você vem, nem
para onde vai. Conte-me isto, eu adoro conversar com quem venera o Senhor.
Crianças! Levem o saco do peregrino para a sala dos ícones, é lá que ele
passará a noite.
Diante
destas palavras, eu disse para mim mesmo:
-
Será isto um ser
humano ou uma aparição?
Desta
forma, fiquei para aguardar o dono da casa. Contei rapidamente minha viagem e
disse que iria a Irkutsk.
-
Pois bem!, disse
a senhora, neste caso você deve passar por Tobolsk, minha mãe mora lá, num
convento onde ela está reclusa; nós lhe daremos uma carta e ela o receberá.
Muitas pessoas vão lhe pedir conselhos espirituais; e aliás você poderá
levar-lhe um livro de João Clímaco que encomendamos em Moscou. Como tudo, isso
irá muito bem!
Enfim
chegou a hora de comer e nos sentamos à mesa. Vieram ainda mais quatro senhoras
que sentaram-se conosco. Após o primeiro prato, uma delas levantou-se,
inclinou-se diante do ícone, à nossa frente, e foi buscar o prato seguinte;
para o terceiro prato, uma outra levantou-se do mesmo modo. Ao ver isto,
dirigi-me à dona da casa:
-
Posso
perguntar-lhe se estas senhoras são de sua família?
-
Sim, são minhas
irmãs, a cozinheira, a esposa do cocheiro, a arrumadeira, e minha dama de
companhia; são todas casadas, não há nenhuma mulher solteira na casa.
Vendo
e ouvindo isto, fiquei ainda mais espantado e agradecia Deus que me havia
conduzido a pessoas tão piedosas. Senti a oração crescer com força em meu
coração; assim, para buscar a solidão, levantei-me e disse à senhora:
-
Vocês devem
repousar após a refeição, mas eu tenho tanto o costume de caminhar que vou dar
um passeio no jardim.
-
Não, eu não
costumo repousar, disse a senhora. Irei com você ao jardim e você me contará
alguma coisa instrutiva. SE você for só, as crianças não o deixarão em paz;
eles não o largarão, pois elas amam os mendigos, irmãos de Cristo, e os
peregrinos.
Não
havia nada a fazer, e assim fomos juntos ao jardim..
A fim
de manter mais comodamente meu silêncio, inclinei-me diante da senhora e lhe
disse:
-
Peço-lhe,
mãezinha, em nome de Deus, que me diga há quanto tempo vocês levam esta vida
tão santa? Conte-me como chegaram a este grau de bondade.
-
É bem fácil,
disse ela. Minha mãe é neta de são Josafá, cuja relíquias são cultuadas em
Belgorod. Tínhamos lá uma grande casa, e uma de suas alas estava alugada a um
fidalgo de pouca fortuna. Ele faleceu e pouco depois sua esposa faleceu também,
depois de ter trazido uma criança ao mundo.
O
recém-nascido estava completamente órfão. Minha mãe recolheu-o e eu nasci no
ano seguinte. Nós crescemos juntos, tivemos os mesmos professores e éramos como
irmão e irmã. Quando meu pai morreu, minha mãe deixou a cidade e veio
estabelecer-se conosco nesta aldeia. Quando chegamos à idade, minha mãe
casou-me com seu afilhado e decidiu entrar para o convento. Depois de nos dar a
sua bênção, ela nos recomendou que vivêssemos como cristãos, que rezássemos a
Deus com todo o coração e que observássemos acima de tudo o mandamento mais
importante, o do amor ao próximo, ajudando os pobres, irmãos de Cristo,
educando nossos filhos no temor a Deus e tratando nossos criados como irmãos. É
assim que vivemos há dez anos nessa solidão, tentando obedecer aos conselhos de
nossa mãe. Temos um asilo para mendigos, no qual estão mais de dez neste
momento, enfermos e doentes; se você quiser podemos ir vê-los amanhã.
Ao
final de seu relato, eu perguntei:
-
E onde está este
livro de João Clímaco que vocês querem enviar à sua mãe?
-
Retornemos à
casa, e eu lhe mostrarei.
Mal
havíamos começado a ler, quando chegou o dono da casa. Nós nos abraçamos
cristãmente como irmãos, e ele conduziu-me ao seu escritório, dizendo:
-
Venha, meu caro,
até meu escritório, abençoar minha cela. Ela deve tê-lo aborrecido (apontou sua
esposa). Sempre que ela encontra um peregrino ou um doente, fica tão feliz que
não o larga noite e dia; é um velho costume da família.
Nós
entramos em seu escritório. Que quantidade de livros e de ícones magníficos,
além de uma cruz em tamanho natural diante da qual estava posto um Evangelho!
Eu me persignei e disse:
-
Vocês têm aqui,
meu senhor, o paraíso de Deus. Ali está o Senhor Jesus Cristo, sua Mãe
puríssima e os santos servidores; e aqui suas palavras e seus ensinamentos
vivos e imortais; penso que muitas vezes vocês têm o prazer de entreter-se com
eles.
-
Sim, disse o
senhor, gostamos muito de ler.
-
Que tipo de
livros vocês têm?
-
Tenho muitos
livros espirituais: eis o Menólogo[68], as obras de João Crisóstomo, de Basílio o Grande,
muitas obras filosóficas ou teológicas e numerosos sermões de pregadores
contemporâneos. Esta biblioteca custou-me cinco mil rublos.
-
Haveria aí
alguma obra sobre a oração?, perguntei.
-
Gosto muito de
livros sobre a oração. Eis um opúsculo recente, obra de um sacerdote de
Petersburgo.
O
senhor pegou um comentário sobre o Pai Nosso e começamos a ler. Logo chegou a senhora trazendo o chá, e as crianças
carregando uma bandeja cheia de uma espécie de torta, de um tipo que eu jamais
comera. O senhor pediu-me o livro, passou-o a senhora e disse:
-
Ela irá nos ler;
ela lê muito bem e enquanto isto nós nos reconfortamos.
A
senhora começou a ler. Enquanto escutava, eu sentia a prece crescer em meu
coração; quanto mais ela lia, mais a prece se desenvolvia e me regozijava.
Subitamente, vi uma forma passar rapidamente no ar, como se fosse meu falecido
estaroste. Fiz um movimento, mas, para disfarçar, eu disse: “Perdão, acho que
cochilei”. Neste momento, tive a impressão de que o espírito de meu estaroste
penetrava meu espírito e o iluminava, senti em mim como que uma grande
claridade e tive numerosas idéias sobre a oração. Enquanto eu me persignava e
esforçava-me para afastar essas idéias, a senhora terminou a leitura e o senhor
perguntou-me se ela havia me agradado. Começamos a conversar.
-
Gostei muito,
disse eu; aliás o Pai Nosso é a mais
elevada e mais preciosa de todas as orações escritas, pois foi o próprio Senhor
Jesus Cristo quem no-la ensinou. O comentário que você leu é muito bom, mas é inteiramente voltado para a vida
ativa do cristão, enquanto que eu li nos Padres uma explicação que é sobretudo
mística e orientada para a contemplação.
-
Em quais Padres
você encontrou isto?
-
Em Máximo o
Confessor, por exemplo, e na Filocalia
em Pedro Damasceno.
-
Você se lembra
do que eles dizem? Repita-nos, se puder.
-
Certamente.
Início da oração: Pai nosso que estais no céu. No livro que lemos, diz-se que estas palavras significam que é
preciso amar fraternalmente ao nosso próximo, porque somos todos filhos do
mesmo Pai. É muito justo, mas os Padres acrescentam a este um comentário mais
espiritual – eles dizem que, ao pronunciar estas palavras, é preciso elevar o
espírito ao Pai celeste, e lembrar da obrigação de estarmos a cada instante na
presença de Deus. As palavras: seja santificado o vosso nome, são explicadas neste livro como o cuidado que
devemos ter em não invocar o nome do Senhor em vão; mas os comentadores
místicos vêem aí a demanda da prece interior do coração, ou seja, para que o
nome de Deus seja santificado, é preciso que ele esteja gravado no interior do
coração e que pela prece perpétua ele santifique e ilumine todos os
sentimentos, todas as forças da alma. As palavras: venha a nós o vosso
Reino, são explicadas assim pelos Padres: que
venham aos nossos corações a paz interior, o repouso e alegria espiritual. No
livro, diz-se que as palavras: dai-nos hoje o pão nosso de cada dia, dizem respeito às necessidades de nossa vida
corporal, e ao que é necessário para ajudar o próximo. Mas Máximo o Confessor
entende por “pão cotidiano” o pão celeste que nutre a alma, ou seja a palavra
de Deus, e a união da alma com Deus pela contemplação e a prece perpétua no
interior do coração.
-
Ah!, a prece
perpétua é uma obra difícil, ela é quase impossível àqueles que vivem no mundo,
exclamou o senhor; é preciso toda a ajuda do Senhor para que possamos cumprir
sem preguiça mesmo as orações comuns.
-
Não fale assim,
meu senhor. Se fosse uma tarefa além das forças humanas, Deus não a teria
ordenado a todos: sua força aparece na fraqueza[69], e os Padres nos oferecem meios que facilitam o
caminho para a prece interior.
-
Eu jamais li
nada de preciso a este respeito, disse o senhor.
-
Se vocês
quiserem, posso ler alguns extratos da Filocalia.
Tomei
minha Filocalia, procurei uma passagem
de Pedro Damasceno na terceira parte, na página 48, e li o que se segue:
“É
preciso dedicar-se a invocar o nome do Senhor, mais do que a respiração, em
todo o tempo, todo o lugar e todas as ocasiões. O Apóstolo disse: Orai sem
cessar; com isto ele ensina que é preciso lembrar-se de Deus em todos os
tempos, todos os lugares e todas as coisas. Se você fabrica alguma coisa, deve
pensar no criador de tudo o que existe; se você vê a luz, lembre-se daquele que
lha deu; se você observar o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm,
admire e glorifique aquele que os criou; se você se cobre com vestes, pense
naquele de quem você as recebeu e agradeça-o, a ele que provê a sua existência.
Em resumo, que todo movimento lhe seja motivo de celebrar o Senhor, assim você
estará orando sem cessar e sua alma estará sempre alegre”
-
Vejam como este
procedimento é simples, fácil e acessível a todos aqueles que possuem um mínimo
de sentimento humano.
Este
texto agradou-os sobremaneira. O dono da casa abraçou-me com entusiasmo,
agradeceu-me, olhou para a Filocalia e
disse:
-
É absolutamente
necessário que eu adquira este livro; eu o encomendarei em Petersburgo; mas,
para melhor lembrar-me, eu vou copiar imediatamente esta passagem que você leu.
Dite para mim.
E ele
a transcreveu rapidamente, com uma bela caligrafia. Depois exclamou:
-
Meu Deus! Mas eu
tenho justamente um ícone de são Damasceno (provavelmente era João Damasceno)!
Ele
abriu o santuário e fixou sob o ícone o papel que acabara de escrever, dizendo:
-
A palavra viva
de um servidor de Deus colocada sob a imagem incitar-me-á a colocar em prática
este conselho salutar constantemente.
Depois
fomos jantar. Todos estavam à mesa ao mesmo tempo, homens e mulheres. Que
silêncio recolhido, e que calma durante a refeição! Após o jantar, fomos todos
à oração, inclusive as crianças, e me fizeram ler o hino a Jesus Dulcíssimo.
Os
servidores foram repousar e nós permanecemos os três na sala. Então, a senhora
me trouxe uma camisa branca e um par de meias. Eu me inclinei profundamente e
disse-lhe:
-
Minha senhora,
não posso ficar com as meias, jamais as usei; os peregrinos usamos apenas tiras
amarradas nas pernas.
Ela
retornou logo com uma velha blusa amarela de lã, que cortou em tiras. Enquanto
isto o senhor declarou que meus sapatos não valiam mais para nada, e trouxe-me
um par inteiramente novo que ele usava por cima das botas.
-
Vá àquele
quarto, disse ele; não há ninguém e você poderá trocar sua roupa de baixo.
Troquei-me
e voltei para a sala. Eles me fizeram sentar numa cadeira e puseram-se a
calçar-me, o senhor enrolando as tiras nas minhas pernas e a senhora
colocando-me os sapatos. No começo, eu não queria permitir, mas eles me fizeram
sentar, dizendo:
-
Sente-se e fique
quieto, Cristo lavou o pé dos seus discípulos.
Não
pude resistir e comecei a chorar; e eles choraram também.
***
Então
a senhora saiu com as crianças para fazê-las dormir e fomos, o senhor e eu, ao
jardim para nos entretermos no pavilhão. Passamos um longo tempo a velar,
deitados no chão, conversando. De repente, ele se aproximou de mim e disse:
-
Responda-me em
consciência e em verdade, quem é você? Você deve ser de família nobre e finge
seu simplório. Você lê e escreve perfeitamente, pensa e fala com correção;
certamente você não recebeu a educação de um camponês.
-
Eu falei de todo
coração, a si e à sua senhora, contei minhas origens reais e jamais pensei em
mentir nem enganar. E que objetivo teria? Aquilo que eu digo não vem de mim,
mas de meu sábio e falecido estaroste ou dos Padres que tenho lido; e a prece
interior que, mais do que tudo, ilumina minha ignorância, não fui eu que a
adquiri; ela nasceu em meu coração pela misericórdia divina e graças aos
ensinamentos do estaroste. Qualquer pessoa pode fazer o mesmo; basta mergulhar
um pouco mais silenciosamente em seu coração e invocar u pouco mais o nome de
Jesus Cristo, e logo descobrimos a luz interior, tudo se torna claro, e nesta
claridade aparecem certos mistérios do Reino de Deus. E já é um grande mistério
quando o homem descobre esta capacidade de penetrar em si, de se conhecer
verdadeiramente e de chorar docemente sua queda e sua vontade pervertida. Não é
difícil pensar sadiamente e falar com as pessoas, isto é uma coisa possível
porque o espírito e o coração existem anteriormente à ciência e a sabedoria
humanas. Sempre podemos cultivar o espírito pela ciência ou pela experiência;
mas aonde a inteligência não é requerida, nenhuma educação terá efeito. O que
acontece, é que estamos longe de nós mesmos e quase não aspiramos a nos
aproximar, fugimos sempre para não estarmos cara a cara com nós mesmos, preferimos
as migalhas à verdade e pensamos: eu bem que gostaria de ter uma vida
espiritual, ocupar-me da oração, mas eu não teno tempo, os negócios e a
premência da vida me impedem de dedicar-me à prece verdadeiramente. Mas o que é
mais importante e mais necessário, a vida eterna da alma santificada, ou a vida
passageira do corpo, pelo qual nos fazemos tantos danos? É assim que as pessoas
chegam, seja à sabedoria, seja à bestialidade.
-
Perdoe-me, meu
amigo, eu não falei por simples curiosidade, mas por fraternidade e sentimento
cristão, e também porque há dois anos encontrei um caso parecido com o seu.
Um
dia chegou aqui um velho mendigo muito enfraquecido; ele tinha um passaporte de
soldado que deu baixa e era tão pobre que andava quase nu; ele falava pouco e
parecia ser um camponês. Nós o recebemos no asilo; ao cabo de cinco dias, ele
caiu doente, transportamo-lo para o pavilhão e minha esposa e eu nos ocupamos
inteiramente dele. Quando ficou evidente que ele iria morrer, nosso sacerdote
confessou-o, deu-lhe a comunhão e os últimos sacramentos. Na véspera de sua
morte, ele levantou-se, pediu papel e pena, e insistiu para que a porta ficasse
fechada e que ninguém entrasse enquanto ele escrevia seu testamento, que eu
deveria fazer chegar a seu filho, em Petersburgo. Fiquei estupefato quando vi
que ele escrevia com perfeição e que suas frases eram perfeitamente concebidas,
elegantes e cheias de ternura. Amanhã lhe mostrarei este testamento, do qual
guardei uma cópia. Tudo isso espantou-me sobremaneira e, levado pela curiosidade,
pedi-lhe que me contasse sua origem e sua vida. Ele me fez jurar que não
contaria a ninguém antes de sua morte e para glória de Deus fez-me o seguinte
relato:
-
Eu fui príncipe,
e muito rico; levava a vida mais dissipada, mais brilhante, mais luxuosa
possível. Minha esposa falecera e eu vivia com meu filho que era capitão da
Guarda. Uma noite, quando me preparava para ir a um baile, enfureci-me com meu
criado de quarto; em minha exasperação, eu bati-lhe na cabeça e ordenei que o
levassem para a sua aldeia. Isto aconteceu pela noite e, na manhã seguinte, meu
criado havia morrido de congestão cerebral. Mas eu não dei grande importância a
isto e, mesmo arrependendo-me de minha violência, esqueci por completo o
acontecido. Passadas uma seis semanas, meu criado começou a aparecer-me em
sonhos; ele vinha importunar-me a cada noite e me censurava, repetindo sem
cessar: Homem sem consciência, você me assassinou! Depois, passei a vê-lo mesmo
acordado. A aparição tornou-se cada vez mais freqüente e, no final, ele ficava
quase todo o tempo ao meu lado. No fim,
junto com ele, comecei a ver outros mortos, homens que eu havia ofendido
grosseiramente, mulheres que eu havia seduzido. Todos me censuravam e não me
davam repouso, de tal maneira que eu já não podia dormir ou comer, ou fazer
fosse lá o que fosse; eu estava no fim de minhas forças e a pele me colava aos
ossos. Os esforços dos melhores médicos não deram nenhum resultado. Parti para
tratar-me no estrangeiro, mas, depois de sei meses de tratamento, não apenas não
tinha tido nenhuma melhora, como as terríveis aparições só faziam aumentar.
Voltei mais morto do que vivo; minha alma, antes de separar-se do corpo, havia
conhecido plenamente as torturas do inferno; a partir de então acreditei no
inferno e sei o que ele significa.
Em
meio a estes tormentos, compreendi enfim minha infâmia, arrependi-me,
confessei-me, liberei todos os meus servidores e fiz o voto de passar o resto
de minha vida nos trabalhos mais duros e de me esconder sob as vestes de
mendigo a fim de me tornar o servidor mais humilde das pessoas da mais baixa
condição.
Bastou
tomar firmemente esta decisão e as aparições cessaram por completo. Minha
reconciliação me trouxe tal alegria, tamanho sentimento de conforto, que não
consigo expressar. Compreendi então, também pela experiência, o que é o paraíso
e como o reino de Deus pode se derramar no interior de nosso coração. Logo eu
estava completamente curado, e assim coloquei meu projeto em execução; munido
do passaporte de um antigo soldado, deixei em segredo o local onde nascera. Já
faz quinze anos que eu vago pela Sibéria. Às vezes, ofereço minha força de
trabalho – na medida de minhas possibilidades – aos camponeses, às vezes
mendigo em nome de Cristo. Ah! Em meio a
estas privações, quanta felicidade experimentei! Que beatitude, que paz de
consciência! Só o podem compreender aqueles a quem a misericórdia divina tirou
do inferno da dor para transportá-lo ao paraíso de Deus.
Depois
disto, ele me entregou o testamento para enviá-lo ao filho e, no dia seguinte,
faleceu.
-
Veja, eu tenho
uma cópia deste testamento dentro da Bíblia que está no meu casaco. Se você
quiser lê-lo, eu lhe mostrarei. Ei-lo aqui!
Desdobrei
o papel e li:
“Meu
querido filho!
Já
faz quinze anos que você não vê seu pai, mas, na sua obscuridade ele recebeu às
vezes notícias suas e sempre nutriu por você um amor paternal. É este amor que
o empurra a enviar-lhe estas últimas palavras para que elas lhe sirvam de lição
de existência.
Você
sabe como eu sofri para resgatar minha vida irresponsável e culposa; mas você
não sabe a felicidade que me trouxeram, durante minha vida errante, os frutos
de meu arrependimento.
Morro
em paz junto ao meu benfeitor que é também o seu, pois as benesses trazidas ao
pai devem alcançar o filho afetuoso. Exprima a ele meu reconhecimento por todos
os meios ao seu alcance.
Ao
deixar-lhe minha bênção paternal, eu o exorto a que você se lembre de Deus e
que obedeça à sua consciência: seja bom, prudente e razoável; trate com
benevolência os seus subordinados, não despreze os mendigos e os peregrinos,
lembrando-se que só o despojamento e a vida errante permitiram ao seu pai
encontrar o repouso de sua alma.
Rezando
a Deus para que lhe conceda sua graça, eu fecho os olhos tranqüilamente, na
esperança da vida eterna pela misericórdia do Redentor dos homens, Jesus
Cristo.”
Assim
conversávamos, o senhor e eu. Então eu lhe disse:
-
Penso que muitas
vezes vocês devem ter aborrecimentos no asilo. Existem tantos irmãos nossos que
se tornam peregrinos apenas por desleixo ou por preguiça, e que são licenciosos
pelo caminho, como já vi muitas vezes.
-
Não, esses são
muito raros, respondeu o senhor. Nós praticamente só encontramos peregrinos.
Mas quando eles não têm o ar muito sério, aí é que somos ainda mais gentis e os
colocamos no hospital por algum tempo. Ao contato com nossos pobres, irmãos de
Cristo, muitos deles se corrigem e saem daqui com um coração humilde e doce.
Não faz muito tempo, tive um exemplo. Um comerciante de nossa cidade havia
caído tão baixo que era expulso dos
lugares a golpes de bastão e ninguém mais queria dar-lhe sequer um pedaço de
pão. Ele era bêbado, violento, brigão, e ainda por cima roubava. Foi assim que
ele chegou um dia a nós, premido pela fome; ele pediu pão e água da vida, pois
ele gostava muito de beber. Nós o recebemos gentilmente e dissemos: “Fique
conosco, você terá tanta água da vida quanto quiser, mas com uma condição:
depois de beber, você irá se deitar e se fizer o menor escândalo, não só o
expulsaremos para sempre como ainda daremos queixa ao delegado para que o
encarcere por vagabundagem.” Ele aceitou e ficou conosco. Durante uma semana ou
mais, ele de fato bebeu tudo o que quis; mas a cada vez, conforme sua promessa
e também porque ele não queria se ver privado de álcool, ele ia se deitar em
sua cama ou estender-se quietinho no fundo do jardim. Quando ele recobrava seus
sentidos, nossos irmãos do asilo lhe falavam e exortavam-no a controlar-se ao
menos um pouco. Assim, ele começou a beber menos e em três meses ele voltou a
ficar sóbrio, Hoje em dia ele está trabalhando e não come mais do pão dos
outros. Ainda anteontem ele veio me ver.
Quanta
sabedoria nesta disciplina guiada pela caridade!, pensei eu, e exclamei:
-
Bendito seja
Deus, cuja misericórdia age em sua casa!
Depois
de tudo isso, nós cochilamos um pouco e, ao ouvirmos o sino soar o ofício da
manhã, fomos à igreja, na qual já estava a senhora com as crianças. Nós ouvimos
o ofício e depois a santa liturgia. Ficamos o senhor, o menino e eu no coro,
enquanto a senhora e a menina colocaram-se à porta da iconostase para ver a
elevação dos Santos Dons. Meu Deus, como eles oravam, e que lágrimas de alegria
vertiam! Seus rostos estavam de tal modo iluminados que, olhando-os, comecei a
chorar!
Ao
final do ofício, o senhor e a senhora, o sacerdote, os servidores e todos os
mendigos sentaram-se juntos à mesa; havia bem umas quarenta mendigos, enfermos,
doentes e crianças. Que silêncio e que paz ao redor daquela mesa! Juntando
coragem, eu disse baixinho ao dono da casa:
-
Nos mosteiros,
lêem-se as vidas dos santos durante as refeições; aqui poderia ser feito o
mesmo, já que você possui o Menólogo completo.
O
senhor voltou-se para sua esposa e lhe disse:
-
Verdadeiramente,
Maria, é preciso instituir isto aqui. Será excelente para todos nós. Eu lerei
na primeira refeição, depois será a sua vez, depois a do padre, e também nossos
irmãos, cada um na sua vez e conforme o que souber.
O
padre parou de comer e disse:
-
Escutar,
escutarei com prazer, mas quanto a ler... Eu não tenho um instante sequer
livre! Mal ponho os pés em casa e já não consigo encostar a cabeça, tudo são afazeres e preocupações; é
preciso isto, é preciso aquilo; um bando de crianças; o gado no campo; o dia
todo se passa entre estas bobagens e não me resta um minuto para ler e
instruir-me. Tudo o que aprendi no seminário, há muito tempo esqueci.
Eu
tremi diante destas palavras, mas a senhora segurou-me o braço e me disse:
-
O padre fala
assim por humildade, ele sempre se rebaixa, mas é um homem excelente e piedoso;
ele ficou viúvo depois de vinte anos, ele educa todos os seus filhos e ademais
ele também diz sempre os ofícios.
Estas
palavras me lembraram uma frase de Nicetas Stétatos na Filocalia:
“É
conforme a disposição interior da alma que apreciamos a natureza dos objetos”,
ou seja, cada qual forma uma idéia dos outros segundo aquilo que ele próprio é;
mais adiante, ele diz ainda: “Quem chegou à prece e ao amor verdadeiro não
distingue o justo do pecador, mas ama igualmente a todos os homens e não os
condena, assim como Deus faz brilhar o sol e cair a chuva sobre os bons
e os ruins.[70]”
Fez-se
silêncio novamente; diante de mim estava sentado um mendigo do asilo,
completamente cego. O dono da casa lhe dava de comer, partia seu peixe,
estendia-lhe a colher e lhe dava de beber. Eu o observava com atenção e verifiquei
que, em sua boca sempre entreaberta, a língua movia-se constantemente; eu me
perguntei se ele não estaria recitando a prece e p observei com mais cuidado.
Ao fim da refeição, uma senhora idosa passou mal, ela sufocava e gemia. O
senhor e a senhora levaram-na para seu quarto e a estenderam sobre o leito; a
senhora ficou lá para cuidar dela, o padre foi buscar os santos óleos por via
das dúvidas e o senhor ordenou que selassem um cavalo para ir a galope buscar
um médico na cidade. Todos se dispersaram.
Eu
tinha em mim como que uma fome de oração; sentia um violento desejo de deixá-la
jorrar, pois já fazia dois dias que eu não tinha silêncio nem tranqüilidade.
Sentia em meu coração uma espécie de onda prestes a transbordar e espalhar-se
pelos meus membros, e, como eu a retinha, senti uma forte dor no coração – mas
uma dor benéfica, que simplesmente me empurrava à oração e a o silêncio.
Compreendi então porque os verdadeiros adeptos da prece perpétua fogem do mundo
e se escondem longe de todos; também entendi porque o bem-aventurado Hesíquio
diz que a conversa mais elevada não passa de baboseiras, se se prolonga demais,
e lembrei-me das palavras de são Efraim o Sírio: “A palavra é de prata, mas o
silêncio é de ouro.” Pensando nessas coisas, cheguei ao hospital; todos dormiam
após a refeição. Subi à minha cama, acalmei-me, repousei e rezei um pouco.
Quando os mendigos despertaram, fui procurar o cego e o encontrei no jardim; sentamo-nos num canto isolado e
começamos a conversar.
-
Diga-me, em nome
de Deus, e pelo bem da minha alma, você recita a prece de Jesus?
-
Já faz muito
tempo que a repito sem cessar.
-
Que efeito você
sente?
-
Somente que não
posso passar sem ela nem de dia nem de noite.
-
E como Deus lhe
revelou esta atividade? Conte-me isto em detalhe, meu querido irmão.
-
Pois bem, eu era
um artesão daqui, ganhava meu pão costurando, viajava pelos outros estados,
pelas cidades, e costurava para os camponeses. Numa aldeia, aconteceu-me de
ficar por longo tempo na casa de um camponês para vestir toda sua família. Num
dia de festa, em que não tinha nada para fazer, vi três velhos livros numa
prateleira colocada logo abaixo dos ícones. Eu perguntei: “Alguém de vocês sabe
ler?” Eles responderam: “Ninguém; estes livros herdamo-los de um tio que
conhecia as letras.”
Tomei
um dos livros, abri-o ao acaso e li as seguintes palavras, das quais me lembro
até hoje: “A prece perpétua consiste em invocar sem cessar o nome do Senhor;
sentado ou em pé, à mesa ou no trabalho, em toda ocasião, em todo local e todo
o tempo, é preciso invocar o nome do Semhor.”
Refleti
sobre o que havia lido e achei que isto me convinha e muito; assim que,
enquanto costurava, comecei a repetir baixinho a oração, e logo fiquei alegre.
As pessoas que viviam comigo na izba perceberam isto e se divertiram comigo:
“Virou feiticeiro, murmurando sem parar? Ou anda fazendo círculos de magia?”
Para
disfarçar, deixei de mover os lábios e passei
a dizer a oração apenas movendo a língua. Por fim, habituei-me a isto de
tal maneira que minha língua a recita dia e noite e isto me faz um grande bem.
Continuei
a trabalhar por muitos anos e um dia, subitamente, fiquei cego; em nossa
família, muito têm a água escura no fundo dos olhos. Como sou muito pobre, a
comunidade conseguiu-me um lugar no asilo em Tobolsk. É para lá que eu vou, mas
o senhor e a senhora me retiveram, pois querem me conseguir um transporte para
ir até lá.
-
Como se chamava
o livro que você leu? Não seria a Filocalia?
-
Por minha fé,
não sei. Não cheguei a ver o título.
Fui
buscar minha Filocalia. Encontrei na
quarta parte as palavras do patriarca Calixto que ele havia dito de cor e
comecei a ler.
-
É isto
mesmo,exclamou o cego. Leia, leia, meu irmão, está muito bom.
Quando
eu cheguei à passagem onde é dito: é preciso orar com o coração, ele me perguntou o que isto significava e como se
praticava. Eu lhe disse que todo o ensinamento da prece do coração estava
exposto neste livro, a Filocalia, e ele
me pediu com insistência que lhe lesse tudo o que a ela se referia.
-
Eis o que
faremos, disse-lhe eu. Quando você pensa partir para Tobolsk?
-
Imediatamente,
se você quiser, respondeu ele.
-
Então, está
resolvido. Eu irei partir amanhã; tudo o que temos a fazer é partirmos juntos e
pelo caminho eu lerei tudo o que se refere à prece do coração e lhe indicarei
como descobrir seu coração e nele penetrar.
-
E o transporte?,
disse ele.
-
Deixe o
transporte para lá! Daqui a Tobolsk não há mais do que cento e cinqüenta
verstas, iremos lentamente; a dois, sozinhos, é bom caminhar; e caminhamos
estamos na melhor situação para ler e para falarmos sobre a prece.
Assim,
ficamos de acordo; à noitinha, o próprio dono da casa veio nos chamar para o
jantar e, depois de termos comido, dissemos-lhe que pensávamos em irmos e que
não tínhamos necessidade de transporte, pois desejávamos ler a Filocalia.
-
Este livro
agradou-me muito; já escrevi uma carta, separei o dinheiro e amanhã, quando for
ao tribunal, enviarei tudo a Petersburgo para que me tragam uma Filocalia já no próximo correio.
E
assim, na manhã seguinte, colocamo-nos a caminho depois de termos agradecido o
senhor e a senhora donos da casa por sua caridade e doçura exemplares; eles nos
acompanharam ainda por cerca de suas verstas e depois nós nos demos adeus.
O CAMPONÊS CEGO
Avançávamos
lentamente, o cego e eu, sem fazermos mais do que dez ou quinze verstas por dia, e o restante do tempo
sentávamo-nos em lugares isolados e líamos a Filocalia. Eu li para ele tudo o que se referia à prece do
coração, seguindo a ordem indicada pelo meu estaroste, ou seja começando pelos
livros de Nicéforo o Monge, depois Gregório o Sinaíta e assim por diante.
Quanta atenção e ardor ele colocava em escutar tudo isto! Como ele estava feliz
e emocionado! Logo ele começou a fazer-me perguntas sobre a oração que meu
espírito não era suficiente para responder.
Depois
de ter escutado minha leitura, o cego pediu-me que lhe ensinasse um método
prático para encontrar seu coração pelo espírito, para introduzir nele o nome
divino de Jesus Cristo e orar assim interiormente com o coração. Eu lhe disse:
-
Sem dúvida, você
não enxerga nada, mas com a inteligência você pode se representar coisas que
você já viu, como um homem, um objeto ou um dos seus membros, seu braço ou sua
perna; você consegue imaginá-los com tanta clareza como se os estivesse vendo,
e consegue, embora cego, dirigir seu olhar a eles?
-
Eu posso,
respondeu o cego.
-
Então represente
assim para si seu coração, volte seus olhos para ele como se o estivesse vendo
através de seu peito, e escute com seus ouvidos como ele bate a cada batida.
Quando você estiver prático nisto, esforce-se por ajustar a cada batida do
coração, sem perdê-lo de vista, as palavras da prece. Com o primeiro batimento,
diga ou pense: Senhor, com o segundo: Jesus, com o terceiro: Cristo, com o quarto: tem piedade, e com o quinto: de mim, e repita muitas vezes este exercício. Isto lhe será
fácil, porque você já está preparado para a prece do coração. Depois, quando
você estiver habituado a esta atividade, comece a introduzir em seu coração a
prece de Jesus e faça-a sair juntamente com a respiração, ou seja que,
inspirando o ar, diga ou pense: Senhor Jesus Cristo, e ao expirar: tem piedade de mim! Se você agir assim freqüentemente, e por tempo
suficiente, logo você sentirá uma ligeira dor no coração, depois pouco a pouco
nascerá nele um calor benfazejo. Com a ajuda de Deus, você chegará assim à ação
constante da prece no interior do coração. Mas sobretudo evite qualquer
representação, qualquer imagem que venha a nascer em seu espírito enquanto você
reza. Expulse todas as imaginações; poisos Padres nos ordenam, a fim de que não
caiamos na ilusão, manter o espírito vazio de todas as formas durante a oração.
O
cego, que havia me escutado com atenção, exercitou-se com zelo naquilo que eu
lhe havia dito e, à noite, em cada etapa, ele dedicava-se a isto por longas
horas. Ao cabo de cinco dias, ele sentiu no coração um forte calor, e uma
felicidade indizível; por outro lado, ele sentia um grande desejo de se dedicar
sem parada à oração, que lhe revelava o amor que ele sentia por Jesus Cristo.
Às vezes, ele via uma luz, mas sem que nenhum objeto aparecesse; quando ele
penetrava em seu coração, parecia-lhe ver aí brotar a chama brilhante de uma
grande tocha que, escapando para fora, iluminava tudo; e esta chama lhe
permitia inclusive enxergar objetos afastados, como aconteceu uma vez.
Nós
atravessávamos uma floresta, e ele estava mergulhado, silencioso, na oração. De
repente, ele disse:
-
Que lástima! A
igreja está em chamas e a torre acaba de desabar!
-
Pare de evocar
imagens estéreis, eu lhe disse, isto é uma tentação. É preciso repelir o mais
depressa possível qualquer sonho. Como enxergar o que se passa na vila? Ela
ainda dista dez verstas daqui.
Ele
obedeceu-me e, voltando a rezar, calou-se. Por volta do entardecer, chegamos à
vila e eu vi de fato muitas casas incendiadas e a torre caída – ela era
construída com vigamento de madeira; as pessoas ao redor discutiam e se
admiravam que ao tombar a torre não tivesse atingido ninguém. Pelo que pude
entender, o infortúnio havia se produzido no mesmo instante em que o cego falara
dele na floresta. No mesmo instante, pude ouvi-lo dizer:
-
Segundo você,
minha visão era estéril, mas veja o que aconteceu. Como não agradecer e amar a
o Senhor Jesus Cristo que revela sua graça aos pecadores, aos cegos e aos
insensatos! E agradeço também a você, que me ensinou a atividade do coração!
Eu
lhe respondi:
-
Quanto a amar a
Jesus Cristo, ame-o, e quanto a agradecê-lo, agradeça-o; mas guarde-se de
considerar qualquer visão como uma revelação direta, pois isto se produz
naturalmente conforme a ordem das coisas. A alma humana não está inteiramente
ligada à matéria. Ela pode ver na escuridão, e tanto os objetos distantes
quanto os próximos. Mas nós não desenvolvemos esta faculdade da alma, pois
estamos curvados ao peso de nosso corpo grosseiro ou sob a confusão de nossos
pensamentos distraídos e superficiais. Quando nos concentramos sobre nós
mesmos, quando nos abstraímos de tudo o que nos cerca e aguçamos nosso
espírito, então a alma retorna completamente a si mesma e passa a agir com toda
a sua força; esta é uma ação natural. Meu falecido estaroste me disse que mesmo
quem não se dedica à prece, por exemplo enfermos ou pessoas especialmente
dotadas, quando colocadas numa câmara escura, vêem a luz que se desprende de
cada objeto, sentem a presença de seu duplo e penetram nos pensamentos dos
outros. Mas os efeitos diretos da graça de Deus, durante a prece do coração,
são de tal modo deliciosos que nenhuma língua os pode descrever: é impossível
compará-los com qualquer coisa de material; o mundo sensível é rasteiro,
comparado com as sensações que a graça revela no coração.
O
cego escutou estas palavras com atenção e tornou-se ainda mais humilde; a prece
desenvolvia-se sem cessar em seu coração e ele rejubilava-se
indescritivelmente. Minha alma estava feliz e eu agradecia ao Senhor que me
havia feito encontrar tamanha piedade em um de seus servidores.
Por
fim chegamos a Tobolsk; eu o acompanhei ao asilo e, após nos termos despedido
afetuosamente, retomei meu caminho solitário.
Durante
um mês, segui lentamente e sentia como os exemplos vivos são úteis e benéficos.
Eu lia freqüentemente a Filocalia e nela
verificava tudo o que eu havia dito ao cego. Seu exemplo inflamava meu zelo,
meu devotamento e meu amor pelo Senhor. A prece do coração me fazia tão feliz
com eu jamais pensara possível sobre a terra, e eu me perguntava como as
delícias do reino dos céus poderiam ser ainda maiores. Esta felicidade não
iluminava apenas o interior de minha alma; também o mundo exterior me aparecia
sob um aspecto arrebatador, tudo me conclamava a amar e louvar a Deus; os
homens, as árvores, as plantas, os animais, tudo me parecia familiar e por toda
parte eu encontrava a imagem do nome de Jesus Cristo; às vezes, sentia-me tão
leve que pensava não possuir mais um corpo e estar flutuando no ar; às vezes,
eu penetrava inteiramente em mim mesmo. Eu via claramente meu interior e me
admirava com o fantástico edifício que é o corpo humano; às vezes, sentia uma
alegria tão grande que, se tivesse me tornado rei, no meio de todas estas consolações,
pediria a Deus que me permitisse morrer o mais breve possível para transbordar
a seus pés meu reconhecimento no mundo dos espíritos.
Sem
dúvida, eu sentia grande prazer nestas sensações, ou talvez tivesse Deus
decidido assim, mas depois de algum tempo senti em meu coração um temor e um
tremor. Seria, pensei, um novo infortúnio ou uma tribulação como a que passei
por causa da jovem a quem ensinei a prece de Jesus na capela? Os pensamentos me
acabrunhavam como nuvens e eu me lembrei das palavras de João Cárpatos, que diz
que o mestre é muitas vezes jogado na desonra e suporta tentações e tribulações
por causa daqueles a quem ajudou espiritualmente. Depois de lutar contra esses
pensamentos, mergulhei na prece que fez com que desaparecessem completamente. Senti-me
mais forte e disse a mim mesmo: Seja feita a vontade de Deus! Estou pronto a
suportar tudo o que Jesus Cristo me enviar para expiar minha teimosia
endurecida e meu orgulho. De resto, aqueles a quem eu revelara recentemente o
mistério da prece interior tinham sido preparados para ela pela ação misteriosa
de Deus antes de me encontrar. Este pensamento acalmou-me e voltei a caminhar
com a oração e com alegria, ainda mais feliz do que antes. Durante dois dias, o
tempo permaneceu chuvoso e a estrada estava tão enlameada que mal se conseguia
sair dos alagadiços; segui pela estepe e por quinze verstas não encontrei
nenhum lugar habitado; enfim, perto do anoitecer, percebi um albergue à beira
do caminho, e alegrei-me pensando que ali poderia ao menos repousar e passar a
noite. Amanhã pela manhã, se Deus quiser, o tempo será melhor.
O POSTO DOS CORREIOS
Ao me
aproximar, vi um velho vestido com uma capa de soldado; ele estava agachado
diante do albergue e tinha aspecto de ter bebido. Eu o saudei e disse:
-
A quem posso
pedir autorização para passar a noite aqui?
-
Quem pode
deixá-lo entrar, senão eu?, exclamou o velho; eu sou o chefe aqui! Eu sou o
encarregado dos correios e aqui é o posto de troca dos animais.
-
Então, meu
senhor, permita-me passar a noite aqui.
-
E você, por
acaso possui ao menos um passaporte? Mostre-me seus papéis!
Eu
lhe dei meu passaporte e, com ele nas mãos, ele voltou a exclamar:
-
Onde está seu
passaporte?
-
Você o tem nas
mãos, disse-lhe eu.
-
Pois bem,
entremos então.
O
encarregado dos correios colocou seus óculos, olhou meu passaporte e disse:
-
Tudo parece
estar em regra, pode permanecer aqui; como você vê, eu sou um homem rígido;
espere, vou lhe trazer um copo.
-
Eu nunca bebo,
respondi.
-
Oh, está bem!
Mas ao menos, jante conosco.
Ele
sentou-se à mesa com a cozinheira, uma jovem que não havia bebido pouco também,
e eu instalei-me junto com eles. Durante toda a refeição, eles não cessaram de
discutir e censurar-se mutuamente e, no final, estalou uma verdadeira briga. O
encarregado foi dormir no quarto destinado às provisões e a cozinheira ficou
lavando as panelas e os talheres enquanto imprecava contra o velho.
Eu
estava sentado e, vendo que ela não se acalmava, disse:
-
Aonde posso
dormir, mãezinha? Estou muito cansado.
-
Vou arrumar-lhe
uma boa cama, paizinho.
Ela
colocou um banco junto ao que havia sob a janela da frente e estendeu uma
coberta de feltro e uma almofada. Eu me deitei e fechei os olhos, simulando
dormir. Por muito tempo ainda a cozinheira agitou-se para lá e para cá através
do cômodo; enfim, ela terminou suas tarefas, apagou a luz e aproximou-se de
mim. Abruptamente, a janela que ficava no canto da edificação despedaçou-se com
um barulho terrificante, as folhas, o vidro, os montantes tudo voou em pedaços;
ao mesmo tempo, ouvimos do lado de fora gemidos, gritos e um ruído como de
luta. A mulher, aterrorizada, correu para o meio do cômodo e caiu por terra. Eu
saltei do banco, achando que a terra abria-se sob meus pés. Subitamente, vi
dois cocheiros que traziam para dentro da izba um homem todo coberto de sangue,
a ponto de não se ver seu rosto. Era um correio do Estado que deveria trocar de
cavalos. O cocheiro calculara mal a curva e o varão atingira a janela; mas,
como havia uma valeta diante da izba, a carroça havia tombado e o correio havia
machucado a cabeça contra um poste pontudo que sinalizava a entrada. O correio
pediu água e álcool para lavar seu ferimento. Ele o molhou com água da vida,
depois tomou um copo e exclamou:
-
Os cavalos!
Eu me
aproximei dele e disse:
-
Como você poderá
viajar com este ferimento?
-
Um correio não
tem tempo para ficar doente, respondeu ele, e saiu.
Os
cocheiros colocaram a mulher num canto perto da poêle e a cobriram com uma
colcha, dizendo: “Foi o medo que lhe fez
isto.” Quanto ao encarregado do posto, ele tomou seu copo e voltou a
dormir. Eu permaneci só.
Logo
a mulher se levantou e se pôs a caminhar de um lado para ouro, como uma
sonâmbula; afinal, ela saiu da casa. Fiz uma oração e, sentindo-me
enfraquecido, adormeci um pouco antes da aurora.
Pela
manhã, disse adeus ao encarregado do posto e, caminhando pela estrada, elevei
minhas orações com fé, esperança e reconhecimento ao Pai das misericórdias e de
todas as consolações, que havia afastado de mim um desastre eminente.
Seis
anos depois destes eventos, passando por um convento de freiras, entrei na
igreja para rezar. A abadessa recebeu-me amavelmente após o ofício e me fez
servirem chá. Logo, chamaram-na para receber alguns hóspedes de passagem; ela
foi ao seu encontro e me deixou com as irmãs que a serviam. Vendo uma delas que
vertia humildemente o chá, tive a curiosidade de lhe perguntar:
-
Faz muito tempo,
mãezinha, que você está neste convento?
-
Cinco anos,
respondeu-me ela; quando me trouxeram para cá, eu já não tinha mais minha
cabeça no lugar, mas Deus teve piedade de mim. A madre abadessa colocou-me
perto dela em uma cela e fez-me pronunciar os votos.
-
E como perdeu
você seu espírito?
-
De medo. Eu
trabalhava em um posto dos correios. Uma noite, enquanto eu dormia, os cavalos
derrubaram uma janela e, de terror, eu enlouqueci. Durante um ano, meus pais me
levaram aos lugares santos. Mas somente aqui eu fui curada.
Diante
destas palavras, eu me regozijei em minha alma e glorifiquei a Deus cuja
sabedoria faz girar tudo em nosso benefício.
UM SACERDOTE DO CAMPO
Eu tive
muitas outras aventuras, disse eu dirigindo-me ao meu pai espiritual. Se eu as
quisesse contar todas, três dias não bastariam. Mas se você quiser, posso lhe
contar mais uma.
Num
claro dia de verão, vi a alguma distância da estrada um cemitério, ou antes uma
comunidade paroquial, vale dizer uma igreja com as casas dos servidores do
culto e um cemitério. Os sinos soavam para o ofício; eu corri para a igreja. As
pessoas do lugar dirigiam-se também para lá; mas muitos sentavam-se na grama
diante da igreja antes de entrar, e, vendo que eu me apressava, disseram-me:
-
Não vá tão
depressa, você tem tempo; aqui, o serviço é muito lento, o padre está doente, e
além disso é vagaroso!
De
fato, a liturgia não foi rápida; o jovem padre, pálido e descarnado, celebrava
com lentidão, mas com piedade e sentimento; ao final da missa, ele pronunciou
um excelente sermão sobre os meios de se adquirir o amor de Deus.
O
padre convidou-me para comer com ele. Durante a refeição, eu lhe disse:
-
Você diz o
ofício com grande piedade, meu pai, mas muito devagar!
-
Sim, respondeu
ele, isto não me faz muito agradável aos paroquianos, eles cochilam, mas não há
o que fazer; pois eu gosto de meditar e pesar cada palavra antes de cantá-la;
privadas deste sentimento interior, as palavras não têm nenhum valor, nem para
si nem para os outros. Tudo reside na vida interior e na prece atenta! Ah!,
como as pessoas se ocupam pouco da atividade interior!, acrescentou. É porque
as pessoas não querem mais, não sentem necessidade de iluminação espiritual interior.
Eu
perguntei novamente:
-
Mas como chegar
a isto? É uma coisa muito difícil!
-
Nem um pouco;
para receber a iluminação espiritual e tornar-se um homem interior, basta tomar
um texto qualquer da santa Escritura e nele concentrar toda a atenção pelo
maior tempo possível. É assim que se descobre a luz da inteligência. Para orar,
é preciso fazer o mesmo: se você quiser que a prece seja pura, direita e
benéfica, escolha uma oração curta, composta de poucas palavras, breves mas
fortes, e repita-a muitas vezes, por muito tempo; é assim que tomamos gosto
pela oração.
Este
ensinamento do padre agradou-me muito porque ele era prático e simples e ao
mesmo tempo profundo e sábio. Agradeci a Deus em espírito por me haver dado a
conhecer um verdadeiro pastor de sua Igreja.
No
final da refeição, o padre disse:
-
Vá repousar um
pouco, eu preciso ler a Palavra de Deus e preparar meu sermão de amanhã.
Eu me
retirei para a cozinha. Não havia ninguém senão a velha cozinheira, sentada
encurvada a um canto, tossindo de vez em quando. Sentei-me sob uma lâmpada,
tirei minha Filocalia do saco e me pus a
ler em voz baixa; ao fim de um certo tempo, me dei conta de a velha sentada no
canto recitava sem parar a prece de Jesus. Fiquei feliz de escutar invocar
assim o Santo Nome do Senhor e lhe disse:
-
Como lhe fica
bem, mãezinha querida, recitar assim a prece! É a melhor obra e a mais cristã!
-
Sim,
respondeu-me ela, nestes anos de declínio meu contentamento é que o Senhor me
perdoe!
-
Há muito tempo
você reza assim?
-
Desde a minha
juventude, paizinho; e sem isto eu não poderia viver, pois a prece de Jesus
salvou-me da infelicidade e da morte.
-
Como assim?
Conte-me, eu lhe peço, para glória de Deus e em honra da benfazeja prece de
Jesus.
Coloquei
minha Filocalia no saco, sentei-me perto
dela e ela começou seu relato:
-
Eu era uma
menina, jovem e alegre; meus pais conseguiram-me um noivo; mas, na véspera do
casamento, meu noivo entrou em nossa casa, bruscamente, e não havia dado nem
dez passos quando caiu morto! Isto me assustou de tal maneira que decidi
renunciar ao matrimônio e dirigir-me aos santos lugares para rezar a Deus.
Entretanto, eu tinha receio de partir sozinha pelas estradas, pois, em minha
juventude, as pessoas desonestas poderiam me atacar. Uma velha senhora que há
muito tempo levava uma vida errante me ensinou que eu precisava recitar sem
cessar a prece de Jesus e me assegurou decididamente que esta oração me
preservaria de todos os perigos no caminho. Eu acreditei no que ela me disse e
jamais me aconteceu nada, mesmo nas regiões mais afastadas; meus pais me davam
dinheiro para viajar. Ao envelhecer, tornei-me doente, e felizmente o padre
daqui me abrigou e me mantém em sua bondade.
Escutei
com alegria este relato e não sabia como agradecer a Deus por este dia que me
revelara exemplos tão edificantes. Um pouco mais tarde, pedi a este bom e santo
padre que me abençoasse e retomei meu caminho, feliz.
A CAMINHO DE KAZAN
E
veja, há não muito tempo, quando atravessava a província de Kazan para chegar
até aqui, foi-me dado ainda conhecer os efeitos da prece de Jesus; mesmo para
aqueles que a praticam inconscientemente, ela é de fato o meio mais seguro e
rápido de atingir os bens espirituais.
Num
entardecer, eu tive que parar numa aldeia tártara. Ao entrar na rua da aldeia,
percebi diante de uma casa uma carruagem com um cocheiro russo; os cavalos
estavam desatrelados e pastavam por perto. Todo contente, decidi pedir para
pernoitar nesta casa, aonde ao menos eu encontraria cristãos. Aproxime-me e
perguntei ao cocheiro quem ele conduzia. Ele respondeu que seu patrão fazia o
caminho de Kazan à Criméia. Enquanto eu falava com o cocheiro, o patrão afastou
a cortina de couro da portinhola, lançou um olhar sobre mim e disse:
-
Eu vou passar a
noite aqui, mas eu não entro em casas de Tártaros porque são muito sujas;
assim, decidi dormir na carruagem.
Algum
tempo depois, o senhor saiu para dar alguns passos – estava um belo entardecer
– e nós entabulamos uma conversação. Trocamos muitas perguntas e ele me contou
o que segue:
-
Até os sessenta
e cinco anos eu servi na marinha como capitão de navios. Ao envelhecer, tive
gota e pedi a aposentadoria na Criméia, numa propriedade de minha esposa; eu
estava quase sempre doente. Minha esposa gostava muita das recepções, e adorava
jogar cartas. Ela se cansou de estar vivendo sempre com um doente e foi-se para
Kazan viver com nossa filha que desposara um funcionário do governo; ela levou
tudo consigo, inclusive os criados domésticos, e deixou-me como serviçal apenas
um menino de oito anos, meu afilhado.
Eu
permaneci assim só durante três anos. Meu afilhado era muito espero, ele
arrumava o quarto, acendia a lareira, cozinhava meu mingau de cereais e
esquentava meu samovar. Mas, ao mesmo tempo, ele era rude, um verdadeiro
pestinha: ele corria, gritava, brincava, dava trombadas por toda parte e me
perturbava muito. Ora, devido à doença e aos aborrecimentos, eu gosto muito de
ler livros espirituais. Eu tinha um livro excelente de Gregório Palamas sobre a
prece de Jesus. Eu o lia quase sem parar, e recitava um pouco a oração. A bagunça
do pequeno era-me extremamente desagradável e nenhuma medida, nenhuma punição
podia impedi-lo de fazer besteiras. Acabei por inventar um meio: eu o forcei a
sentar-se no quarto em um banquinho e a repetir sem cessar a prece de Jesus. De
início, isto desagradou-o no mais alto grau e, para escapar, ele ficava quieto.
Mas,
para forçá-lo a executar minhas ordens, peguei umas varinhas para corrigi-lo.
Enquanto ele dizia a prece, eu lia tranqüilamente ou escutava o que ele dizia;
mas, quando ele emudecia, eu lhe mostrava as varinhas e, de medo, ele retomava
a oração; isto me fazia muito bem porque a calma começava enfim a se
restabelecer em minha casa. Depois de algum tempo, eu percebi que as varinhas
não eram mais necessárias; ele executava minhas ordens com mais zelo e prazer;
mais tarde, seu caráter mudou completamente; ele se tornou doce e silencioso e
se dedicava mais aos trabalhos domésticos. Eu fiquei feliz e passei a lhe dar
mais liberdade. E o resultado? Pois bem, ele se habituou tão bem à prece que
ele a repetia sem cessar, sem nenhum constrangimento da minha parte. Quando
falei dito com ele, ele respondeu-me que sentia uma vontade insuperável de
recitar a oração.
-
E o que você
sente?
-
Nada de
especial, mas me sinto bem enquanto repito a oração.
-
Como assim, bem?
-
Não sei
explicar.
-
Você se sente
alegre?
-
Sim, eu me sinto
alegre.
Ele
tinha doze anos quando estourou a guerra na Criméia. Parti para Kazan e o levei
comigo à casa de minha filha. Uma vez lá, nós o instalamos na cozinha com os
outros serviçais, e ele ficou muito infeliz porque eles passavam o tempo a
divertir-se e a brincar entre si e também a rirem-se dele, impedindo-o de
ocupar-se da oração. Ao cabo de três meses, ele veio me procurar e disse:
-
Vou-me embora
para casa; não posso mais suportar a vida aqui com todo esse barulho.
Eu
lhe disse:
-
Como você poderá
ir tão longe, sozinho e em pleno inverno? Espere que eu parta também, e eu o
levarei comigo.
Mas
no dia seguinte, meu pestinha tinha desaparecido. Enviamos pessoas a procurá-lo
por toda parte, mas foi impossível encontrá-lo. Enfim, num belo dia, eu recebi
uma carta da Criméia; os guardas da casa anunciavam-me que, no dia 4 de abril,
seguinte à Páscoa, haviam encontrado o menino morto na casa vazia. Ele estava
estendido no chão em meu quarto com as mãos cruzadas sobre o peito, seu boné na
cabeça e com as roupas leves que ele usava no dia de sua fuga.
Enterraram-no
no meu jardim. Ao receber a notícia, eu me espantei da rapidez com que ele
havia chegado até lá. Ele partira em 26 de fevereiro e foi encontrado no dia 4
de abril. Três mil verstas em um mês, é difícil de fazer a cavalo. É preciso
fazer cem verstas por dia. E ainda por cima, com roupas leves, sem passaporte e
sem um sou! Admitamos que ele encontrou uma condução para fazer a viagem, mas isto
não poderia acontecer sem a intervenção divina. Assim, meu pequeno criado
experimentou o fruto da oração, disse o senhor terminando sua história, e eu,
no fim da minha vida, ainda não cheguei tão alto como ele chegou.
Então
eu disse ao senhor:
-
Eu conheço esse
livro excelente de Gregório Palamas, que você leu. Mas aí é examinada sobretudo
a prece vocal; você deveria ler este livro, que se chama a Filocalia. Nele, você encontrará o ensinamento completo da
prece de Jesus no espírito e no coração.
Ao
mesmo tempo, mostrei-lhe a Filocalia.
Ele recebeu meu conselho com visível prazer.
-
Meu Deus,
disse-me ele, que maravilhosos efeitos do poder divino descobrimos em cada
oração! Como é profundo e edificante este relato; as chibatadas ensinaram a
prece a este menino e lhe trouxeram a alegria! As infelicidades e as tristezas
que encontramos no caminho da oração, não são elas as chibatadas de Deus?
Então, porque temê-las se é a mão do nosso Pai celeste que no-las mostra? Ele é
cheio de amor por nós, e estas chibatadas nos ensinam a orar mais ativamente, e
nos conduzem a alegrias indizíveis.
Tendo
terminado estes relatos, eu disse ao meu pai espiritual:
-
Perdoe-me, em
nome de Deus, eu falei demais e os Padres dizem que tanta conversa, mesmo
espiritual, não passa de vaidade se se prolongar em demasia. É tempo de
encontrar aquele que deve me acompanhar a Jerusalém. Ore por mim, este pobre
pecador, para que o Senhor em sua misericórdia faça girar minha rota para o
bem.
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Eu o desejo de
toda minha alma, irmão amado no Senhor, respondeu ele. Que a graça
superabundante de Deus ilumine seus passos e caminhe ao seu lado, como fez o
anjo Rafael com Tobias!
[1] De hesíquia: calma, silêncio, contemplação.
[2] Ou seja depois do Pentecostes. No Oriente, o domingo
que corresponde ao nosso domingo de Pentecostes é consagrado à Trindade e a
segunda-feira ao Espírito Santo.
[3] Literalmente: na perícope
273. Este termo designa os textos da Bíblia, tais como são lidos no decurso
dos ofícios ou da missa.
[4] I Tessalonicenses, V, 17.
[5] Efésios, VI, 18.
[6] I Timóteo, II, 8.
[7] Um pomiéchtchik,
fidalgo pertencente à pequena nobreza rural.
[8] 1 versta = 1.067 metros.
[9] Esta é a pergunta tradicional endereçada por um
discípulo ao seu mestre nos mosteiros e eremitérios do Oriente. Ela repete
Mateus, XIX, 16: “Que devo fazer de bom para obter a vida eterna?”
[10] Pequeno tratado sobre a eficácia da prece, escrito por
são Dimitri de Rostov (1651-1709).
[11] Monge ou eremita que leva uma vida de ascese e oração,
e que, sem ocupar uma função específica no mosteiro, é escolhido pelos monges
jovens ou por leigos como mestre espiritual.
[12] Cântico dos cânticos, V, 2.
[13] “Acima de tudo, recomendo que se façam preces, orações,
súplicas, ações de graças por todos os homens.” (I Timóteo, II, 1)
[14] “Outrossim, o Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza;
porque não sabemos o que devemos pedir, nem orar como convém, mas o Espírito
mesmo intercede por nós com gemidos inefáveis.” (Romanos, VIII, 26)
[15] Extraído do tratado De
Cordis Custodia – Migne, P.G., tomo 147, col. 963-966. O texto russo traduz
to logistikon não como “razão”, mas como “faculdade de elocução”.
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no entanto, esta expressão também pode
remeter a uma interpretação da definição aristotélica do homem como zôon lógon échon, ou seja, literalmente
“vivente dotado de palavra", mais do que "animal dotado de
razão" ou "animal racional". (N.T.)
[16] Esta história lembra um episódio da vida de são Serafim
de Sarov. No outono de 1801, quando cortava lenha numa floresta, o monge foi
atacado por ladrões que queriam roubar-lhe dinheiro; quando ele lhes disse nada
possuir, eles o agrediram na cabeça e feriram gravemente. O ermitão recusou-se
a se deixar tratar por médicos, confiando na ajuda do Senhor, que lhe havia
enviado uma visão enquanto ele estava caído por terra. Ele pediu que seus
agressores não fossem perseguidos, lembrando a palavra evangélica: “Não temais
aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que
pode precipitar a alma e o corpo na geena.” (Mateus, 10, 28)
[17] Antiga unidade
monetária, de valor variável conforme a época e o lugar.
[18] “Isto é bom e agradável diante de Deus, nosso Salvador,
o qual deseja que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da
verdade.” (I Timóteo, II, 4)
[19] “Não vos
sobreveio tentação alguma que ultrapassasse as forças humanas. Deus é fiel: não
permitirá que sejais tentados além das vossas forças, mas com a tentação ele
vos dará os meios de suportá-la e sairdes dela.” (I Coríntios, X, 13)
[20] O alfabeto eslavo comporta quarenta e três letras,
bastante diferentes dos caracteres do alfabeto russo.
[21] “Crês que há um
só Deus. Fazes bem. Também os demônios crêem e tremem.” (Tiago, II, 19)
[22] “Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver
sede, dá-lhe de beber. Procedendo assim, amontoarás carvões em brasa sobre a
sua cabeça.” (Romanos, XII, 20)
[23] “Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, fazei bem
aos que vos odeiam, orai pelos que vos [maltratam e] perseguem.” (Mateus, V,
44)
[24] Mateus, V, 40.
[25] “...para que vos conceda, segundo seu glorioso tesouro,
que sejais poderosamente robustecidos pelo seu Espírito em vista do crescimento
do vosso homem interior.” (Efésios, III, 16)
[26] “Mas vem a hora,
e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e
verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja.” (João, IV, 23)
[27] “Nem se dirá:
Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino de Deus já está no meio de vós.”
(Lucas, XVII, 21)
[28] “Outrossim, o
Espírito vem em auxílio à nossa fraqueza; porque não sabemos o que devemos
pedir, nem orar como convém, mas o Espírito mesmo intercede por nós com gemidos
inefáveis.” (Romanos, VIII, 26)
[29] “Permanecei em
mim e eu permanecerei em vós. O ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não
permanecer na videira. Assim também vós: não podeis tampouco dar fruto, se não
permanecerdes em mim.” (João, XV, 4)
[30] “Meu filho,
dá-me teu coração. Que teus olhos observem meus caminhos.” (Provérbios, XXIII,
26)
[31] “Ao contrário, revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não
façais caso da carne nem lhe satisfaçais aos apetites.” (Romanos, XIII, 14);
“Todos vós que fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo.”
(Gálatas, III, 27)
[32] “O Espírito e a
Esposa dizem: Vem! Possa aquele que ouve dizer também: Vem! Aquele que tem
sede, venha! E que o homem de boa vontade receba, gratuitamente, da água da
vida!” (Apocalipse, XXII, 17)
[33] “Porquanto não
recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas
recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! Pai! O Espírito mesmo dá testemunho ao nosso
espírito de que somos filhos de Deus.” (Romanos, VIII, 15-16)
[34] Trata-se sem dúvida de um sermão de Efraim o Sírio, no
qual o julgamento é apresentado de modo particularmente dramático.
[35] 1 libra = antiga medida de peso, entre 380 e 552
gramas.
[36] Pope: padre das igrejas ortodoxas eslavas.
[37] Cf. Gregório de
Nice, Vie de Moïse, ed. Daniélou
(Sources chrétiennes, I bis), pg. 174: “Pois aí está realmente a perfeição de
não abandonar a vida pecadora por medo do castigo, à maneira dos escravos, nem
de cumprir o bem na esperança de recompensas, mas (...) não temer senão uma só
coisa, que é perder a amizade divina e estimar apenas uma coisa honrada e
amável, que é tornar-se amigo de Deus.”
[38] I Coríntios,
XII, 31.
[39] I
Tessalonicanses, V, 19.
[40] “Nem se dirá: Ei-lo aqui; ou: Ei-lo ali. Pois o Reino
de Deus já está no meio de vós.” (Lucas, XVII, 21)
[41] Existe aí uma
analogia com a divisão tripartite da vida espiritual, tal como definida por
Máximo o Confessor e antes dele por Evagro: “A razão não se ocupa senão de Deus
apenas (...) a inteligência é o intérprete das coisas, canta seus louvores e
reflete sobre as coisas que unidas levam a eles, a sensibilidade enobrecida
pela inteligência reflete enfim as forças e as atividades dispersas em tudo e
revela à alma na medida do possível o sentido oculto das coisas.” (Máximo o
Confessor, Ambigua P. G., Tomo 91,
col. 1112-1116D)
[42] Salmos, CIII,
24.
[43] O rosário que os
religiosos russo têm constantemente enrolado em volta da mão é constituído por
um longo cordão de seda ou de lã cujos nós substituem as contas dos rosários
ocidentais.
[44] “Por isso, a criação aguarda ansiosamente a
manifestação dos filhos de Deus. Pois a criação foi sujeita à vaidade (não
voluntariamente, mas por vontade daquele que a sujeitou), todavia com a esperança de ser também ela
libertada do cativeiro da corrupção, para participar da gloriosa liberdade dos
filhos de Deus.” (Romanos, VIII, 19-20)
[45] Também chamado raskolnik,
um “velho crente”.
[46] Mateus, XVI, 16.
[47] Literalmente: o centurião e o decurião. Eleito pela
assembléia comunitária, o centurião era o agente ativo da polícia rural, sob o
controle direto do comissário de polícia. Estas funções, que remontam à idade
média, só receberam uma definição precisa a partir de 1837, data de fundação da
polícia rural. Os centuriões tinham sob suas ordens os decuriões, também
eleitos pela assembléia comunitária.
[48] Diminutivo de
Akoulina. É a forma popular de Acilina, santa cujas festas são celebradas em 7
de abril e 13 de junho na Igreja grega.
[49] Trata-se das Instruções de santo Antônio em 170
capítulos, que abrem as Filocalias grega
e eslava. Elas podem ser lidas em Migne, P.G. tomo 40. Elas são certamente
apócrifas, assim como todos os demais textos atribuídos ao fundador da vida
anacorética (salvo a carta ao abade Teodoro, P.G., tomo 40, 1065-1066), e
constituem um texto essencialmente estóico interpolado por um matiz cristão, de
nuança bastante religiosa.
[50] I João, IV, 4.
[51] I Coríntios, X, 13.
[52] São Gregório Palamas.
[53] Provérbios, XVIII, 19.
[54] Casinha adaptada para os banhos de vapor, afastada da
casa por precaução contra incêndios, de uso bastante difundido por toda a
Rússia.
[55] Mateus, XXII,
37.
[56] Marcos, XIII,
33.
[57] João, XV, 4.
[58] Salmos, XXXIV,
9.
[59] Catequese de
Simeão reproduzida em Migne, P.G. t.120, col 693-792, (Tratado da Fé).
[60] Há um episódio
análogo na Vida do arcebispo Avvakum.
Ele engasgara com um pedaço de peixe, mas sua filha Agripina acorreu e “com
seus pequenos cotovelos bateu-me no dorso; um jato de sangue jorrou de minha
garganta e eu pude respirar.”
[61] Nas izbas –
casas russas de madeira – a poêle é
uma parte em tijolos que permanece sempre quente; sobretudo no inverno, as
pessoas colocam as camas na parte superior; muitas vezes os idosos passam aí
todo o dia.
[62] Hino em louvor à
Virgem que é cantado “sem se sentar”. O hino contém vinte e quatro estrofes na
ordem do alfabeto grego, entre as quais são colocadas litanias. Composto para a
festa da Anunciação, o hino celebra a um tempo este mistério e o da Encarnação.
O acatista é o mais belo, profundo e antigo hino mariano de toda a literatura
cristã.
[63] Salmo DXXII, 28.
[64] Filipenses, II,
13.
[65] “Anseio pelo
conhecimento de Cristo e do poder da sua Ressurreição, pela participação em
seus sofrimentos, tornando-me semelhante a ele na morte, com a esperança de
conseguir a ressurreição dentre os mortos. Não pretendo dizer que já alcancei
(esta meta) e que cheguei à perfeição. Não. Mas eu me empenho em conquistá-la,
uma vez que também eu fui conquistado por Jesus Cristo. Consciente de não tê-la
ainda conquistado, só procuro isto: prescindindo do passado e atirando-me ao
que resta para a frente, persigo o alvo, rumo ao prêmio celeste, ao qual Deus
nos chama, em Jesus Cristo.” (Filipenses, III, 13)
[66] Cf. Evagro o
Pôntico, Tratado da Oração: “Uma vez
que a inteligência chegou à oração pura e verdadeira, os demônios já não chegam
a ela pela esquerda, mas pela direita. Eles lhe apresentam uma visão ilusória
de Deus, alguma figura agradável aos sentidos, de maneira a fazê-la crer que
obteve a perfeição do objetivo da prece...”
A este respeito, comenta o Pe. Hausherr: “Leiamos as Centúrias de Evagro, supl. 27: “Os
pensamentos diabólicos cegam o olho esquerdo, aquele que serve à contemplação
dos seres,” O Comentador sírio Babai não precisou de muita imaginação para
dizer que o olho direito serve à contemplação de Deus. Ora, é o estado em que
nos encontramos, pois o intelecto “ora verdadeiramente”. Compreende-se assim
que os demônios vêm da direita e não dos pensamentos, mas simplesmente com
passos físicos.” (Hausherr, Orientalia
Christiana, tomo XXX, 1933)
[67] Esta invocação, colocada no início de numerosos salmos,
é cantada nas liturgias de são João Crisóstomo e são Basílio durante a primeira
parte da missa e no começo das vésperas sob forma de antífona.
[68] Coletânea contendo as vidas dos santos mês a mês,
conforme as datas de suas festas. O Menólogo russo moderno, obra de são Dimitri
de Rostov, foi publicada em Kiev de 1684 a 1705. Ele foi lançado em Moscou pela
Imprensa sinodal em 1759 graças aos cuidados de Josafá Mitkevitch e foi
reeditada muitas vezes depois.
[69] “Mas [o Senhor]
me disse: Basta-te minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a
minha força. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite
em mim a força de Cristo.” (II Coríntios, XII, 9)
[70] Mateus, V, 45.
Eis um blog onde se encontra uma abundante fonte de sabedoria! Deus o salve!
ResponderExcluirParabéns pelo post. Achei de um conteúdo sensacional.
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